TOMADA DE SUBSÍDIO Nº 13
 TOMADA DE SUBSÍDIOS
 ITEM 6 DA AGENDA REGULATÓRIA DA ANATEL PARA O BIÊNIO 2023-2024 – REGULAMENTO DE DEVERES DOS USUÁRIOS
 Mar/2023
Item 1

1. INTRODUÇÃO

Entre as competências legais previstas para atuação da Anatel está a avaliação do relacionamento entre as prestadoras de serviços de telecomunicações e seus usuários, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas, de forma a estabelecer um ambiente saudável para a prestação de serviços com qualidade e que promova investimentos sólidos e duradouros, garantindo uma conectividade significativa e que permita à população brasileira não somente o acesso, mas uma experiência online segura, satisfatória, enriquecedora e produtiva com preços acessíveis.

Nesse sentido, a Agência, no âmbito da Agenda Regulatória para o biênio 2023-2024, aprovada pela Resolução Interna nº 182, de 30 de dezembro de 2022, estabeleceu a iniciativa regulatória nº 6. Tal iniciativa refere-se à avaliação quanto à necessidade de regulamentação sobre deveres dos usuários dos serviços de telecomunicações, nos termos do artigo 4º, I da Lei Geral de Telecomunicações – LGT (Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997).

Cabe frisar que a Resolução nº 632, de 07 de março de 2014, em seu artigo 4º já estabelece deveres gerais a serem observados pelos consumidores. No entanto, a avaliação a que se refere a Agenda Regulatória no item em questão busca debater a necessidade de regras específicas para os grandes usuários, ou que demandem algum tratamento regulatório peculiar, como, por exemplo, aqueles usuários que fazem uso massivo das redes de telecomunicações.

O referido artigo 4º da LGT, transcrito abaixo, indica que os usuários de serviços de telecomunicações devem utilizar adequadamente os serviços, equipamentos e redes de telecomunicações.

Lei Geral de Telecomunicações – LGT (Lei nº 9.472/1997):

“Art. 4° O usuário de serviços de telecomunicações tem o dever de:

I - utilizar adequadamente os serviços, equipamentos e redes de telecomunicações; (grifo nosso)

II - respeitar os bens públicos e aqueles voltados à utilização do público em geral;

III - comunicar às autoridades irregularidades ocorridas e atos ilícitos cometidos por prestadora de serviço de telecomunicações.”

Adiante, o artigo 61 da mesma lei define como Serviço de Valor Adicionado – SVA  a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações, sendo que o § 1º do mesmo artigo afirma que o SVA não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição.

Lei Geral de Telecomunicações – LGT (Lei nº 9.472/1997):

"Art. 60. Serviço de telecomunicações é o conjunto de atividades que possibilita a oferta de telecomunicação.

§ 1° Telecomunicação é a transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza.

§ 2° Estação de telecomunicações é o conjunto de equipamentos ou aparelhos, dispositivos e demais meios necessários à realização de telecomunicação, seus acessórios e periféricos, e, quando for o caso, as instalações que os abrigam e complementam, inclusive terminais portáteis.

Art. 61. Serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações.

§ 1º Serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição.

§ 2° É assegurado aos interessados o uso das redes de serviços de telecomunicações para prestação de serviços de valor adicionado, cabendo à Agência, para assegurar esse direito, regular os condicionamentos, assim como o relacionamento entre aqueles e as prestadoras de serviço de telecomunicações.” 

No que se refere a SVA, cabe à Anatel regular os condicionamentos para assegurar o uso por provedores de SVA dos meios de telecomunicações necessários para o desempenho de suas atividades, como o relacionamento deles com as prestadoras de serviço de telecomunicações, uma vez que perante a Anatel o provedor do SVA é um usuário de um serviço de telecomunicações.

Também se extrai da definição supra que a oferta de SVA à população necessita de um serviço de telecomunicações que a sustente. Ou seja, para que o usuário final possa usufruir de um SVA que cursa por um determinado serviço de telecomunicações, é preciso que seja também firmado um contrato junto a uma prestadora de serviço de telecomunicações.

Como se vê, no que se refere à oferta de SVA, tem-se que compete à Anatel regular o acesso às redes de telecomunicações aos prestadores deste serviço. Ainda, sendo os prestadores de SVA usuários de serviços de telecomunicações, o uso feito por estes das redes de telecomunicações também está sob a égide da regulação pela Anatel, conforme quaisquer outros usuários.

Por outro lado, o Marco Civil da Internet – MCI (Lei n º 12.965, de 23 de abril de 2014) define em seu art. 5º, VII, o que seriam aplicações de internet, assim como os contornos quanto a discriminação e degradação de tráfego, em seu art. 9º, o qual foi regulamentado pelo Decreto nº 8.771, de11 de maio de 2016.

Resta claro pelo disposto no Decreto n.º 8.771/2016, em especial no art. 5º, § 2º, e art. 6º, o papel legal e necessidade de atuação da Anatel para a adequada prestação de serviços e aplicações na internet, devendo a Agência regular, por meio de normas e ações de fiscalização, com o objetivo de preservar a estabilidade, segurança e funcionalidade das redes e o bom funcionamento da internet, sempre se pautando pelas melhores práticas e padrões internacionais que versem sobre o tema.

Dessa forma, diante do presente cenário de digitalização de serviços e oferta de diversas aplicações por meio de plataformas digitais, classificados pelo MCI como provedores de aplicação e pela LGT como SVA, e por consequência usuários das redes de telecomunicações, as quais utilizam massivamente tais redes, é relevante avaliar como tornar o relacionamento entre esses usuários e as prestadoras desses serviços profícuo e equilibrado. Busca-se, assim, manter e ampliar os investimentos no acesso e na conectividade, possibilitando a todos desfrutarem de uma experiência online segura, com qualidade satisfatória, enriquecedora, produtiva e acessível a preços justos. A importância desta avaliação é indicada pela União Internacional de Telecomunicações no Global Connectivity Report 2022, disponível em https://www.itu.int/dms_pub/itu-d/opb/ind/d-ind-global.01-2022-pdf-e.pdf.

Na presente Tomada de Subsídios, a Agência busca promover um diálogo com todos os interessados para identificar problemas e reunir evidências (dados e fatos baseados em informação crível) que serão importantes insumos para o processo de avaliação das possíveis ações para, no escopo da pressente iniciativa, auxiliar no atingimento dos objetivos indicados no planejamento estratégico da Anatel para os anos 2023-2027. Entre tais objetivos estratégicos destacam-se, no escopo da presente discussão, os seguintes: “1. promover a conectividade e a prestação de serviços de comunicação com qualidade para todos” e “3. fomentar a transformação digital junto à sociedade em condições de equilíbrio de mercado”. Mais informações sobre o plano estratégico da Anatel podem ser acessadas em https://sistemas.anatel.gov.br/anexar-api/publico/anexos/download/e3241ae37bc6426b6042e1baef5b6259.

Assim, espera-se contribuições a esta Tomada de Subsídios por meio de respostas às questões apresentadas no item 3, com o maior nível de detalhamento e embasamento possível. Adicionalmente, devido à grande relevância do tema e para auxiliar na reflexão a respeito das questões feitas, apresenta-se a seguir uma contextualização inicial do atual cenário das telecomunicações e o relacionamento com os usuários de serviços de telecomunicações, incluindo os Serviços de Valor Adicionado ofertados por diversos atores e plataformas digitais.


Item 2
2. CONTEXTUALIZAÇÃO INICIAL

2.1 Panorama e desafios para uma conectividade significativa

Nessa seção será apresentado um panorama amplo da conectividade e da importância da infraestrutura de telecomunicações para possibilitar o fornecimento de diversos serviços e aplicações que contribuam para o bem-estar da população brasileira em vários aspectos, seja na educação, na cultura, na produtividade, entre outros. Tratar-se-á de indicar o estado atual das redes e sua contribuição para a sociedade. Além disso, devem ser indicados alguns dos desafios que devem ser enfrentados no futuro próximo para atingir todo o potencial das redes e da infraestrutura de conectividade.


Item 3
2.1.1 Panorama do acesso e da conectividade

A seguir serão reunidos alguns dados e informações relevantes para estabelecer o estado atual da conectividade no Brasil e para indicar como as redes de telecomunicações são a infraestrutura básica e essencial para o fornecimento de uma gama diversa de serviços digitais que somente podem ser prestados por meio dessa infraestrutura. Vale informar que o Plano Estratégico da Anatel para o período de 2023 a 2027 apresenta detalhamento e contextualização aprofundados sobre o tema.

Desde sua criação, em 1997, a Anatel vem atuando ativamente na promoção do acesso de qualidade às infraestruturas de telecomunicações no país, sendo que, nesse período, o seu foco esteve em torno da universalização do acesso, da promoção da competição e do zelo pela qualidade dos serviços.

Ao longo desse tempo, os serviços de telecomunicações e os usos de conectividade mudaram conforme a queda da importância dos usos tradicionais da conectividade e a ascensão de novos usos, nomeadamente de serviços ligados à comunicação de dados via internet. Há hoje quatro principais serviços de telecomunicações interesse coletivo: o Serviço de Comunicação Multimídia (SCM), a banda larga fixa; o Serviço Móvel Pessoal (SMP), a telefonia e banda larga móvel; o Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC), a telefonia fixa; e o Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), a televisão por assinatura. Tais serviços se destacam pelas diferentes evoluções em termos de relevância econômica e maturidade tecnológica no país. Abaixo são apresentados alguns dados do estado atual desses serviços (mais informações em https://informacoes.anatel.gov.br/paineis/acessos).

Figura 1 – Panorama dos serviços de telecomunicações.

Fonte: Anatel (https://informacoes.anatel.gov.br/paineis/acessos)

 

Figura 2 – Participação de mercado para os principais serviços de telecomunicações.

Fonte: Anatel (https://informacoes.anatel.gov.br/paineis/acessos)

Observando-se os dados de acesso no tempo, nota-se que serviços tradicionais de conectividade (serviço de telefonia fixa e a televisão por assinatura) tiveram, no geral, uma redução de adesão dos últimos anos, evidenciando a redução da sua relevância para conectividade. Em outra perspectiva, os dados de acesso para a banda larga fixa, mostram um vigor e crescimento, e os acessos de telefonia e banda larga móvel, apesar de queda recente, tem mantido patamares elevados de densidade.

Figura 3 – Acessos dos principais serviços de telecomunicações.

Fonte: Anatel (https://informacoes.anatel.gov.br/paineis/acessos).

O serviço de voz fixo (STFC) tem reduzido a sua relevância na comunicação, sendo substituído, em ampla escala, pelo serviço de voz móvel (SMP) ou por alternativas digitais. Atualmente, os planos corporativos e vendas conjuntas (pacotes/combos) de serviços de conectividade são responsáveis por grande parte dos contratos de STFC. O serviço de voz móvel também tem sofrido com o processo progressivo de substituição pelo serviço de voz por meio da rede de dados ou plataformas de videoconferência, fato este observado a partir da média do tempo de uso da telefonia móvel por usuário, que segue tendência de retração desde 2017. A redução da relevância da televisão por assinatura, por sua vez, ocorre, principalmente, devido à competição com os serviços de streaming e vídeos online. Isso porque sob a perspectiva dos consumidores trata-se de serviços substitutivos.

Nota-se também que nos serviços de telefonia fixo e móvel há um grande fluxo de chamadas curtas (de até 3 segundos, atendidas ou não) praticado por um número restrito de grandes usuários. Embora seja normal e esperado que nem sempre a comunicação se complete, esse tipo de chamada representa 48% do tráfego das redes das 26 empresas acompanhadas no âmbito das medidas da Anatel para reduzir esse tráfego de chamadas curtas. Antes, chegava a cerca de 60% do total de chamadas. Evidências do uso massivo de redes de telecomunicações por grandes usuários foram objeto da seção 2.4.1 deste documento. 

                Diante desse cenário, é importante garantir a segurança e a integridade das redes de telecomunicações, além de seu uso adequado dentro de condições claras estabelecidas pela regulamentação. Nesse sentido, a presente iniciativa regulamentar se alinha com essa necessidade, tendo o objetivo de estabelecer essas balizas.


Item 4
2.1.2 Desafios para uma conectividade significativa

Abaixo são indicados alguns desafios que ainda se mostram presentes para que se atinja todo o potencial da conectividade e para que a população brasileira usufrua dos benefícios da economia digital.

No documento “Achieving universal and meaningful digital connectivity - Setting a baseline and targets for 2030”, a UIT lista como habilitadores da conectividade significativa as seguintes dimensões:

  1. Infraestrutura, que deve estar disponível, ser rápida e confiável;
  2. Serviço e dispositivos, que devem ser acessíveis financeiramente e disponíveis aos interessados;
  3. Habilidades digitais, que devem ser adequadas para o uso; e,
  4. Segurança, tanto sob os aspectos relacionados à conexão quanto à navegação em si.

O Plano Estratégico da Anatel para o período de 2023 a 2027, identificou quatro tendências principais que atuarão como alavancas de transformação do setor, gerando desafios e oportunidades para a atuação institucional nos próximos anos: (i) introdução e expansão gradual de novas tecnologias de 5G; (ii) crescimento dos serviços OTT (over-the-top); (iii) cibersegurança e privacidade de dados pessoais; e (iv) demanda por uma regulação mais ágil, responsiva e articulada por parte da Anatel.

Além disso, no Brasil e em outras partes do mundo, a demanda por velocidade nos acessos digitais tem crescido e continuará crescendo em razão da digitalização do país. Para oferecer o desempenho de rede em níveis suficientes para o desenvolvimento pleno dos novos usos da conectividade e dos ecossistemas a eles associados, será necessário um grande volume de investimentos e de modo permanente, por exemplo, no 5G e nas full gigabits networks (redes de alta capacidade). Para suprir essa demanda, será necessária a construção de redes sustentáveis, modificando backbone, backhaul e os acessos finais da rede, observando-se os cinco principais atributos para uma infraestrutura de longo prazo: escalabilidade, confiança, qualidade, simplicidade e elementos de sistemas de conectividade.


Item 5
2.2 Novos modelos de negócios e tendências no contexto da nova economia digital

Nessa seção serão abordados brevemente novos modelos de negócio que transformaram e devem continuar transformando a prestação dos serviços de telecomunicações e de valor adicionado, traçando um contexto amplo do relacionamento de interdependência, sinergia e complementariedade entre a infraestrutura de telecomunicações e os serviços digitais, os quais fornecem facilidades e aplicações à população brasileira, promovendo assim uma revolução na forma de usufruto de bens e serviços.


Item 6
2.2.1 Tendências e novos modelos de negócio

A popularização dos smartphones permitiu que os dispositivos móveis desempenhassem papel central na denominada Economia 2.0, notadamente centrada na oferta de serviços. Habilitadas pelo incremento da conectividade, as plataformas digitais desencadearam a emergência de diversos mercados de dois lados, aproximando e intermediando as transações de vendedores e compradores em uma escala sem precedentes. A percepção de demanda reprimida passou a ensejar o surgimento de plataformas especializadas nos mais variados contextos comerciais, revolucionando setores como, por exemplo, transporte, alimentação e hospedagem.

A contestação da oferta clássica pelo ecossistema digital foi especialmente sentida no setor de telecomunicações. Os incrementos de velocidade e volume no tráfego de dados implementados nas últimas décadas possibilitaram uma convergência de serviços inédita. Com o avanço dos atributos da transmissão, aplicativos e soluções, situados na camada lógica da comunicação, tornaram-se capazes de replicar, ou mesmo suplantar, a experiência dos usuários na fruição de produtos típicos, como a realização de chamadas ou o consumo de conteúdo.

Tomando-se o caso da telefonia, a evolução do catálogo de funcionalidades dos aplicativos de mensageria ilustra bem tal dinâmica. Baseados inicialmente na troca simples de mensagens de texto, tais aplicações avançaram para o compartilhamento de áudios e imagens e terminaram por realizar de chamadas de voz e vídeo. No contexto da televisão paga, a concorrência foi ainda mais disruptiva, uma vez que a tecnologia das plataformas possibilita a oferta sob demanda de conteúdo, atributo inviável para o tradicional modelo de distribuição centralizado e de programação linear.

Ainda que a disponibilidade de uma conexão de dados seja condição básica para o usufruto de qualquer dessas aplicações, as ofertas isoladas de voz e conteúdo precisaram reinventar-se. A fim de manter-se relevantes, as ofertas dos serviços de telecomunicação passaram a ampliar o número de produtos contidos no mesmo plano ou promoção, tanto pela combinação de serviços de telecomunicação quanto pela adição de serviços de valor adicionado.

A agregação de funcionalidades não constituiu, contudo, uma tendência exclusiva das telecomunicações, sendo estratégia altamente recorrente também no ecossistema digital. Nesse sentido, as plataformas vêm buscando tornar-se espécie de one stop shop para o usuário, isto é, uma interface única, ou acesso único, que reúna todas as suas necessidades, possibilitando desde a comunicação pura, até a operação de transações financeiras, passando pela disponibilização de marketplaces. A integração de funcionalidades catalisa, ainda, um positivo efeito de rede, em que o valor de mercado da plataforma cresce em função de sua base – mesmo que as receitas de fato geradas pelo conjunto de aplicações seja reduzido ou até inexistente.

Na comparação com o sedimentado setor de telecomunicações, as receitas oriundas de grande parte dos serviços over-the-top correspondem a fração daquelas obtidas pelas principais operadoras – incorrendo, inclusive, em muitos exemplos de operações deficitárias. Apesar desse indicador, a expectativa de crescimento das plataformas digitais, quando considerada a tendência de estagnação das telecomunicações, termina por explicar o crescimento acelerado do valor de mercado das empresas nativo-digitais, conforme exemplifica o quadro que segue:

 

Figura 4 – Panorama Financeiro de empresas de telecom vs. OTTs.

A remuneração das plataformas varia substancialmente com as dinâmicas de cada mercado, baseando-se em modelos de assinatura, comissão por transação, venda de publicidade ou mesmo uma combinação dessas modalidades. A inexistência de um padrão único desponta como elemento característico da economia digital, como ilustram as tentativas frustradas de expansão de receitas baseadas na implementação de modelos distintos aos originalmente praticados pelas plataformas1.

Inobstante a diversidade acima relatada, a publicidade desponta como um dos principais motores de receita das plataformas digitais, especialmente ferramentas de busca ou de compartilhamento de conteúdo. A audiência angariada, aliada ao poder de segmentação da propaganda, inalcançável para as mídias tradicionais, vem garantindo parcelas cada vez maiores do orçamento de divulgação de marcas e empresas. Como passo seguinte na evolução do modelo de anúncios, as redes sociais vêm buscando mesclar conteúdo e propaganda, aproximando a estética e a linguagem de ambas as mensagens, incrementando a organicidade da promoção e diminuindo eventuais resistências do consumidor. A figura abaixo ilustra o avanço da publicidade sobre as chamadas mídias tradicionais:

Figura 5 – Gastos em publicidade estimados e projetados para diferentes mídias nos EUA.

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As operadoras de telecomunicação, a seu turno, vêm enfrentando severas dificuldades na capitalização de seus serviços, ao tempo em que observam um deslocamento das receitas das famílias em direção às plataformas digitais.

Figura 6 – Receitas de prestadoras de telecomunicações selecionadas, por tipo de serviço.

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Em contraste com os rendimentos decrescentes, os investimentos no setor de consolidação aumentaram substancialmente no mesmo intervalo. A implementação da quinta geração da telefonia móvel e a expansão da rede de fibra ótica apresentam-se como principais drivers desse movimento. O acréscimo dos custos de capital do setor possuem explicação multidimensional: por um lado, correspondem a estratégia para estancar ou, em um cenário mais positivo, reverter a queda na rentabilização do usuário por meio do upscale de sua assinatura a partir da introdução de tecnologias mais modernas; por outro, a expansão da infraestrutura de rede como resposta à demanda gerada pela popularização de aplicações e plataformas crescentemente intensivas no consumo de dados; e, em alguns mercados, consta ainda uma componente governamental de pressão, materializada no estabelecimento de metas para cobertura e velocidade das rede no contexto de planos de desenvolvimento nacional4.

O acúmulo de saldos negativos, associado à baixa expectativa de reversão, tem motivado manifestações de descontentamento e pedidos de mudanças estruturais. Em face da assimetria entre os desempenhos das indústrias digitais e de telecomunicações, com o constante distanciamento das primeiras em relação às últimas, as empresas responsáveis pela manutenção e pela ampliação da infraestrutura de comunicação tornaram-se mais vocais quanto à demanda de contribuição dos demais agentes do ecossistema digital no financiamento da rede, em especial, as denominadas big techs, um conjunto de plataformas responsáveis pela maior parte do tráfego. A exigência da “partilha justa” tornou-se tema central no setor, com argumentos distintos provenientes cada lado5.

A fuga de valor das telecomunicações para as plataformas digitais pode ser conferida no mapeamento a seguir, que compara a participação dos vários elos da cadeia de valor setorial. Enquanto as parcelas atribuíveis às camadas de infraestrutura e de dispositivos tenham se mantido relativamente constantes, verifica-se no intervalo uma ampliação da distância entre os pesos dos serviços de conectividade e dos serviços digitais, em claro desfavor dos primeiros:

Figura 7 – Evolução da cadeia de valor de telecomunicações – divisão de market-size.

Ainda que o debate acima seja incipiente e nenhum governo tenha se posicionado em concreto, o fato é que a possibilidade de exigência normativa quanto à participação das plataformas digitais no custeio da rede, tópico até pouco tempo sequer cogitado, hoje é tema prioritário na pauta de discussões setorial.

Uma vez delineado o contexto de transformações do ecossistema digital, com as principais linhas que moldaram a configuração atual, em especial, a interface entre as telecomunicações e as plataformas digitais, cuida-se agora de empreender um olhar prospectivo sobre tal relacionamento, visando à identificação de riscos e oportunidades passíveis da atenção regulatória.

O exercício proposto não é inédito na atuação da Anatel. Em seu estudo “Novos Mercados nas Telecomunicações”, ao debruçar-se sobre suas tendências, a Agência logrou identificar quatro áreas de maior potencial comercial e de impacto estrutural nos médio e longo prazos setoriais, quais sejam os mercados de infraestrutura, de smart pipes6, de espectro e da atenção7.

O último dos quatro mercados identificados, o da atenção, merece ênfase na presente análise. No mundo atual, marcado pela abundância de informação, o insumo essencial, pois escasso, deixa de ser o conteúdo ou a capacidade do meio de transmissão para tornar-se a atenção, tanto em termos de tempo ou de foco, do consumidor. E como em qualquer mercado, quanto maior a carência do recurso, maior sua valorização:

“Na Nova Economia ‘o que é escasso é a atenção humana. A largura das bandas de telecomunicações não é um problema, mas a largura da banda humana’. De acordo com os autores, a revolução tecnológica certamente ampliou o acesso da sociedade à informação enormemente, contudo o crescimento infinito na oferta de informação conflita com uma demanda humana limitada.8

Na confluência de todas essas plataformas, ainda que a partir de modelos de negócio particulares, tem-se que o principal recurso em disputa é a atenção do usuário: o objetivo final dos players do ecossistema digital é garantir que os olhos do usuário permaneçam sintonizados ao máximo.

A figura a seguir9 ilustra a configuração do mercado da atenção. Do esquemático proposto, verifica-se a transversalidade das telecomunicações. A infraestrutura de rede, novamente, assume papel central ao proporcionar a plataforma comum para o consumo dos produtos de todos esses segmentos – de noticiários e filmes a lives e jogos online.

Figura 8 – Mercado da Atenção.

Em uma via de mão dupla, a evolução das redes influencia e pavimenta o caminho para formas disruptivas de consumo da informação, ao mesmo tempo em que tais modelos de negócio inovadores ditam os investimentos e a oferta das redes e serviços de telecomunicações. A integração entre os dois setores é de tal intensidade que as principais plataformas digitais avançam rumo ao controle também de ativos físicos de transporte, como bem ilustra o caso da Google, detentora da maior rede privada de dados do planeta, responsável pelo trânsito de aproximadamente um quarto do tráfego da Internet por meio de um complexo de cabos submarinos e datacenters distribuídos mundialmente.

A economia da atenção é, ainda, uma economia de serviços, muitos deles providos por meio da nuvem. A oferta de serviços em nuvem, como o armazenamento ou o processamento de dados, desponta como relevante perspectiva comercial. Nas telecomunicações, ilustrativamente, a fim de reduzir custos, as operadoras tradicionais passaram a virtualizar uma série de funções de rede, a exemplo do roteamento, em implementações diversas como o Open RAN e o network slicing.

Em linha com a predição cunhada por Clive Humby de que os “Dados são o novo petróleo”, o valor dos dados tende a incrementar-se: quanto maior a disponibilidade de dados, melhor a eficiência de algoritmos de recomendação ou a qualidade do treinamento de modelos de inteligência artificial. A necessidade de escala informacional possui, assim, o condão de aprofundar a concentração de um ecossistema já marcado por uma oligopolização entre grandes conglomerados, referidos como big techs, e pouca abertura para entrada de novos players.

O caráter privado das informações transacionadas amplia a sensibilidade do tema. O conceito de propriedade do usuário sobre seus dados pessoais, não apenas aqueles que possam identificá-lo, mas principalmente aqueles gerados durante seu consumo e navegação na plataforma, vem ensejando debates acerca da legitimidade dos modelos de negócio que orientaram o desenvolvimento da economia digital até então.

Adicionalmente, preocupações de natureza social, como a garantia da qualidade e da veracidade da informação circulada pelas mídias digitais, estão levando governos e organizações civis, nas esferas nacional e internacional, a discutir, de modo inédito, a formatação de uma regulação voltada a definir diretrizes e parâmetros de convivência para o mundo virtual, dada a extensão de suas consequências no mundo físico. Neste contexto, o modelo de regulação europeu desponta como exemplo de interesse. A estratégia adotada parte da divisão dos problemas regulatórios em dois grandes conjuntos normativos: o Digital Market Act – DMA10 e o Digital Services Act – o DSA11. O primeiro ocupa-se dos aspectos concorrenciais das plataformas, focando suas ações sobre agentes intermediários de grande porte; o segundo, a seu turno, define direitos e responsabilidades para usuários e plataformas no uso das aplicações, fomentando a proteção do consumidor e o controle da desinformação.

A regulação do ecossistema digital, dadas sua variedade e complexidade inerentes, apresenta-se desafiadora. O caráter transnacional das aplicações, por exemplo, dificulta a efetividade de ações governamentais isoladas. A fim de contornar tal obstáculo, a coordenação internacional de esforços no endereçamento conjunto do tema sobressai-se como curso de ação. Nesse sentido, iniciativas como a capitaneada pela UNESCO, órgão especial da ONU, para o desenho colaborativo de diretrizes e princípios na regulação de plataformas digitais, equilibradas com a defesa da liberdade de expressão e o acesso à informação, destacam-se como curso de ação recorrente12.

Muito embora a transformação digital já seja uma realidade cotidiana, como o diagnóstico do contexto presente demonstrou, uma série de avanços tecnológicos em desenvolvimento promete aprofundar as tendências correntemente observadas, bem como as discussões relacionadas. Em face, justamente, do caráter incipiente de tais ferramentas e soluções, os modelos de negócio que predominarão no próximo ciclo não restam claros. Nada obstante, inovações como a Inteligência Artificial (IA) generativa, a Web 3.0 e o metaverso possuem todas o potencial de revolucionar novamente a cadeia de valor digital, ampliando o leque de modelos de negócios passíveis de exploração.

A IA generativa angariou a atenção do mundo, indicando seu potencial de popularidade e interesse entre o grande público. A ferramenta ChatGPT, ilustrativamente, atraiu seu primeiro milhão de usuários após apenas cinco dias de seu lançamento, velocidade sem precedentes na indústria13. Ainda, as possibilidades de uso habilitadas pela aplicação, permitiram vislumbrar uma contestação inédita do modelo de buscas na Internet.

Figura 9 – Tempo que serviços selecionados levaram para atingir 1 milhão de usuários.

A facilidade de geração instantânea de textos, imagens ou mesmo vídeos, limitados apenas pela criatividade do usuário, habilita um enorme potencial, no presente momento, de transformações nos mais diversos setores e aspectos da sociedade. Mesmo nas atividades em que se julgava imprescindível a intervenção humana, das artes à aplicação do direito, encontra-se espaço para a aplicação da inteligência artificial, seguido de debates acerca do risco de obsolescência dos profissionais das áreas impactadas.

A significativa descentralização no fundamento da Web 3.0 materializa-se, por exemplo, na tecnologia de blockchain, popularizada na disponibilização de criptomoedas e de NFTs14.

No contexto do metaverso, as aplicações baseadas nas realidades virtual e aumentada, para além de uma maior capacidade de processamento dos servidores, exercerão uma forte pressão nas redes de telecomunicações. A demanda por latência menor e vazão maior, combinadas com uma mobilidade fluida, imputarão um grau inédito de descentralização da rede e seus elementos, de forma a aproximar terminais e servidores e garantir os níveis de serviço apropriados. Na mesma linha, a operacionalização de digital twins15 na indústria pode requerer significativo aperfeiçoamento nos padrões atuais de network slicing e orquestração de rede.

O gráfico abaixo ilustra a visão da indústria acerca da necessidade de evolução dos parâmetros de desempenho da rede, com ênfase na infraestrutura móvel, a fim de que a infraestrutura disponível consiga suportar adequadamente as experiências no metaverso16:

Figura 10 – Novas necessidades de serviços e capacidades das redes.

Ao contrário do ecossistema atual de plataformas digitais, até pelo estágio inicial das novas aplicações, ainda não se constatou a existência de uma killer aplication nessa próxima geração tecnológica. Mesmo os modelos de negócio prioritários não restam bem definidos ou desenhados, enquanto a indústria avança no sentido de alcançar escala na oferta de equipamentos.

Independentemente da incipiência dessa evolução na cadeia de valor digital, a expectativa de pressão sobre a rede de telecomunicações, em nível consideravelmente superior à já experimentada, mostra-se prognóstico seguro no desenvolvimento das telecomunicações. A demanda explosiva por capacidade e escala das redes, nas figuras de incremento do tráfego, tanto de downlink quanto de uplink, e da descentralização da arquitetura de comunicação, em com a borda da rede cada vez mais próxima do usuário final, serão peças-chave na oferta da imersão profunda prometida, por exemplo, pelos agentes do metaverso.

Destarte, do diagnóstico das principais inovações tecnológicas, vislumbra-se uma tendência de aceleramento das transformações do ecossistema digital já em curso, e não uma guinada de rumos radical. Dessa forma, as discussões atuais sobre a regulação das plataformas apresentam-se como pertinentes ao menos no médio-prazo. Uma vez que a essência das falhas de mercado avaliadas tende a manter-se, ainda que sob diferentes roupagens, os remédios regulatórios ora avaliados na cena internacional, tais como o compartilhamento compulsório de dados, a portabilidade de perfis, a assimetria regulatória sobre gatekeepers de grandes plataformas, e a transparência dos algoritmos de impulsionamento de conteúdo, demonstram-se, numa análise preliminar, alternativas suficientemente resilientes ao teste do tempo.

                                   

[1] Em diferentes momentos, a mídia reportou as dificuldades enfrentadas por plataformas consolidadas ao experimentarem novos modelos de remuneração: https://medium.com/swlh/why-youtube-premium-fails-66b6ef2fcd51; https://digiday.com/future-of-tv/netflix-lets-advertisers-take-their-money-back-after-missing-viewership-targets/.

[2] https://www.statista.com/chart/25639/advertising-spend-and-growth-by-segment/

[3] https://telecoms.com/517907/telecoms-revenue-per-user-is-falling-despite-5g-and-fibre-rollouts/

[4] A estratégia europeia desponta como um dos principais exemplos da tendência, conforme detalhamento disponível em https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/policies/broadband-support.

[5] Na contramão da demanda das operadoras de telecomunicação, representante do setor de conteúdo inverteu a lógica do questionamento: “Seria justo cobrar uma participação das teles no investimento em conteúdo? Não é o que queremos fazer. Queremos que todos possam seguir oferecendo seus serviços, em benefício dos consumidores” (Fonte: https://www.convergenciadigital.com.br/Telecom/Netflix-da-um-sonoro-nao-as-teles-por-pagamento-de-infraestrutura-62620.html?UserActiveTemplate=mobile).

[6] Canal inteligente (tradução livre), relacionado a uma operadora de rede móvel, refere-se à rede de uma operadora que aproveita as habilidades de serviço existentes ou exclusivas e os relacionamentos com clientes da operadora para fornecer valor além da conectividade de dados apenas.

[8] Tradução livre de trecho de The Attention Economy (Davenport and Beck, 2001).

[9] Elaboração própria.

[11] Mais detalhes disponíveis em: https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/priorities-2019-2024/europe-fit-digital-age/digital-services-act-ensuring-safe-and-accountable-online-environment_en

[14] NFT, sigla para “Non-fungible Token” que, em tradução livre seriam tokens não fungíveis. Trata-se de um símbolo eletrônico criado em uma plataforma blockchain para representar algum bem considerado único, como uma obra de arte, um tweet, um item colecionável e até mesmo um imóvel virtual.

[15] O termo Digital Twin, ou gêmeo digital, em tradução livre, é o conceito que reúne uma série de tecnologias para espelhar o mundo real em simulações e desenvolvimento de projetos no mundo virtual, com diversas aplicações no mundo corporativo.


Item 7
2.2.2 Desenvolvimento da economia digital e a nova dinâmica da conectividade

Diante da breve avaliação da seção anterior, passa-se a avaliar de forma mais concreta o papel de uma nova conectividade frente a nova economia digital. Destaca-se, de início, que em sua análise de cenários prospectivos, o Plano Estratégico da Anatel para o período de 2023 a 2027 prevê justamente que as tecnologias que moldarão a economia digital seriam caracterizadas por ecossistemas eliminando as fronteiras setoriais tradicionais, sendo sua adoção em três níveis: coletivo, produtivo e individual. Ou seja, o diagnóstico realizado no referido planejamento está alinhado às tendências indicadas acima.

Além disso, em grande parte, esses ecossistemas seriam dependentes da recuperação econômica do país, do próprio desenvolvimento tecnológico e da formulação de políticas públicas orientadas a esse desenvolvimento. Em conclusão, o referido plano indica que a visão de futuro da conectividade poderia ser dividida nas perspectivas da demanda e da oferta, sendo que nesta última consideram-se duas camadas principais: uma relacionada à infraestrutura física e outra, às plataformas e ecossistemas nas quais se desenvolvem os usos da conectividade.

Por fim, prevê-se três camadas de uso: coletivos, produtivos e individuais. Os usos coletivos são tipificados como aqueles de tecnologia de rede num contexto de sociedade como um todo, considerando a convivência e a interação entre os indivíduos. Os usos produtivos são definidos como aqueles relacionados à produção econômica na sociedade. Os individuais, por sua vez, são definidos como aqueles relacionados às tecnologias que impactam no dia a dia de forma mais pessoal e na manutenção e melhoria do estilo de vida das pessoas.

Tabela 1 – Possíveis usos futuros da conectividade.

 

Curto

Médio

Longo

Coletivos

Ensino à distância

Cadastramento e dados públicos

Preservação ambiental

Gestão de trânsito e transporte público

Gestão de água, resíduos e energia

Automóveis autônomos

Produtivos

Atendimentos autônomos

Computação em nuvem e big data

Serviços financeiros

Transporte e logística

Indústria 4.0

Agricultura de precisão

Individuais

Streaming, jogos, mídias digitais e aplicativos, bem-estar e cultura

e-Commerce

Trabalho remoto

e-Saúde

Smart Homes

                 

Fonte: Plano Estratégico da Anatel para o período de 2023 a 2027, figura 11.

No contexto da nova economia digital, em que os dados são o grande produto que circula pela infraestrutura de telecomunicações, o conceito de telecomunicações assume uma perspectiva mais ampla de conectividade, na qual passam a atuar outros agentes, reconfigurando os tradicionais mercados de atacado e varejo. Os indivíduos continuam utilizando os serviços de voz, ou de voz e imagem, mas priorizam a comunicação pela internet com a mediação de plataformas digitais.

Configura-se, então, uma camada de conectividade caracterizada pela mediação das plataformas digitais que possibilitam serviços da conectividade, que de certa forma condicionam, como no passado condicionavam as telecomunicações, o desenvolvimento dos mercados. As plataformas digitais atuam em diversos setores produtivos e mudam fundamentalmente a forma como os serviços são oferecidos, formando ecossistemas digitais compostos por diversos agentes que oferecem soluções multisetoriais. A figura a seguir, referente às Camadas de Fransman para o ecossistema digital em comento, ilustra a interconexão entre as camadas do ecossistema digital supramencionado.

Figura 11 – Camadas de Fransman.

Fonte: Anatel. nº Processo nº 53500.055615/2020-51, SEI nº 9114920.

Como é de amplo conhecimento, as margens de lucratividade no setor de telecomunicações são baixas quando medidas em relação ao lucro líquido sobre ativos, lucro líquido sobre patrimônio próprio, em que pesem as receitas operacionais e EBITDA significativos do setor. No entanto, em um mercado composto por muitos serviços substitutos, a lucratividade tende a ser baixa, assim como a tendência geral do setor de telecomunicações, que trabalha com margens de lucratividade pequenas quando comparadas a outros setores.

Diante da necessidade de alocar custos fixos vultosos relacionados à expansão e manutenção de redes fixas e móveis de telecomunicações, se impôs nos últimos anos o debate sobre “fronteiras competitivas”, em um primeiro momento, no mercado de conteúdo, no contexto da divergência entre Claro S.A. e Fox. Trata-se de atividade adicional, aquela prestada pela Fox, sobre uma rede que lhe dá suporte, como interpretado, ao final, por este órgão regulador, Anatel, em favor da Fox17, caso largamente utilizado neste estudo18.

As “fronteiras competitivas”, envolvendo operadoras de telecomunicações e plataformas digitais ou empresas enquadradas na legislação como SVA, estão mais evidentes e acirradas. Por essa razão, questões de suma importância neste ecossistema ganham maior relevância à medida que as fronteiras entre elas ficam menos evidentes: quais players capturam valor na relação descrita na Figura 11 acima acerca das camadas desse ecossistema digital? Dado o fato de que as empresas de SVA utilizam, em larga escala, as redes de empresas de telecomunicações, da questão inicial derivam outras que buscam equalizar o problema: quais mecanismos podem ser considerados para buscar uma maior equalização dos direitos e obrigações entre prestadores de telecomunicações e provedores de SVA (plataformas digitais)? Quais mecanismos poderiam ser utilizados para que os agentes SVA (plataformas digitais) contribuam com a expansão das redes de telecomunicações?

Consequentemente, se colocam desafios regulatórios no momento de revisão da regulamentação que aborda o tema “competição” entre players tradicionais (prestadores de telecomunicações) e os Serviços de Valor Adicionado (SVA, VOD ou plataformas digitais), considerando seus alcances e limites determinados da legislação que disciplina o setor atualmente.

Algumas plataformas constituintes desses ecossistemas digitais constituem serviços de interesse coletivo com infraestrutura regulada. Outras, por sua vez, ilustrados na Figura 11, têm como regulação exclusiva a autorregulação19, que pode comportar falhas envolvendo direitos e garantias, inovação, competição e ainda os direitos dos consumidores.

Por outro lado, observa-se que a cadeia de valor da conectividade nos últimos anos deixou de ter grande foco no setor de fornecimento de acesso à conectividade (isto é, infraestrutura de comunicações), passando a ser muito superior nas atividades que utilizam a camada de serviços de conectividade, como o comércio digital, as redes sociais e os e-services.

De forma a evidenciar essa alteração na cadeia de valor, considerando esse conceito alargado da conectividade, desde a infraestrutura até os serviços digitais, constata-se que, em 2017, as telecomunicações (aqui expressando os serviços de rede fixa e móvel) representava 33% do valor dessa cadeia, ao passo que, em 2020, ela passou a representar 22%. E isso não ocorreu pela mera ausência de crescimento da conectividade: o oferecimento de serviços de rede móvel e fixa gerou um volume maior de receitas do que nos setores tradicionais. Porém, relativamente aos demais setores, houve um encolhimento da relevância da conectividade. Segundo aponta o Plano Estratégico da Anatel para o período de 2023 a 2027, isso ocorre porque a perda de relevância na cadeia de valor atrai menos investimentos e, por outro lado, setores em expansão atraem mais.

                                   

[17] Conforme discutido no âmbito do processo 53500.056473/2018-24.

[18] Embora estejamos focando nos serviços de voz e vídeo – oferta de conteúdo - a mesma lógica atende ao mercado de varejo de voz onde, como descrito ao longo deste estudo, redes fixas e móveis de telecomunicações, construídas por empresas reguladas, oferecem suporte a empresas que prestam serviços substitutos de voz, chamadas ao longo do texto de OTT, Voip, mas que em contextos distintos vêm sendo chamados de Serviços de Valor Adicionado – SVA, como ilustrado a seguir.

[19] Conforme abordado com maiores detalhes ao longo do estudo, em relação aos serviços de valor adicionados (SVA) ou Over the top – OTT, mencionados ao longo do estudo, como serviços substitutos dos serviços tradicionais de voz ou conteúdo, salienta-se que na legislação de telecomunicações os SVAs são, na própria Lei Geral de Telecomunicações, vistas não como serviços de telecomunicações, mas como serviço de valor adicionado, conforme § 1º art. 61 da Lei nº 9472/97.

 


Item 8
2.2.3 Novos atores do ecossistema digital

A partir das informações constantes do Plano Estratégico da Anatel para o período de 2023 a 2027 e dos novos usos de conectividade detalhados na subseção anterior, é possível identificar atores relevantes (além da própria Agência e da sociedade como um todo) das mais diversas naturezas e em diversas camadas. O quadro abaixo resume e exemplifica (de modo não exaustivo) esses atores.

Tabela 2 – Atores do ecossistema digital para cada camada de produtos e serviços.

Camada

Detalhamento

Atores (exemplos não exaustivos)

Oferta

Serviços

Infraestrutura das telecomunicações

Fornecedores de redes de acesso, fornecedores/prestadores de conectividade, indústria de apoio à gestão e operação do espectro

Radiodifusão

Produtores e difusores de conteúdo em radiodifusão (TV; Rádio)

Serviços de telecom

B2B

Prestadores de soluções de telecom e de Infraestrutura corporativa

B2C

Prestadores de SMP; SeAC; SMP; SCM

Plataformas digitais

Prestadores de SVAs

Produtos

interface dos usuários

Fabricantes e produtores de smartphones e outros equipamentos conectados

Computação / robótica

Fabricantes de Hardware ou software

Fruição de serviços

Coletivos

Prestadores de ensino; gestores de serviços públicos; fabricantes de automóveis (autônomos)

Produtivos

Indústria 4.0; prestadores de atendimentos autônomos; serviços financeiros, de transporte e logística; ecossistema de agricultura de precisão

Individuais

Produtores e difusores de entretenimento; ecossistema do e-commerce; fornecedores de trabalho remoto; ecossistema de e-saúde; fabricantes e fornecedores de equipamentos para smart homes

Gestão pública

(e-gov)

Segurança

Órgãos relacionados à cibersegurança, segurança pública, privacidade e proteção dos dados pessoais

Educação

Órgãos relacionados a ensino híbrido, EAD

Saúde

Órgãos relacionados a telemedicina (e-saúde)

Outros

Órgãos relacionados a anúncios/alertas; meio ambiente e clima; turismo; documentações oficiais digitalizadas; cadastramento de dados públicos; sistema único; e incentivo à inovação e desenvolvimento setoriais (P&D)

Fonte: Adaptado do Plano Estratégico da Anatel para o período de 2023 a 2027.

A criação de novas tecnologias, que levam a novas formas de prestar um serviço, tem sido uma constante na atual era de desenvolvimento tecnológico. No universo das comunicações, área naturalmente associada à tecnologia e, assim, sensível às suas oscilações, muita coisa mudou desde a invenção do telégrafo. A maior responsável pela transformação no meio de se comunicar atualmente é a Internet e o crescimento do seu acesso, especialmente pela expansão da banda larga. Uma série de avanços tecnológicos atuais, como a difusão do uso da fibra ótica na banda larga fixa e o desenvolvimento de altas capacidades de transmissão sem fio (5G, Wi-Fi6, por exemplo), permitem cada vez mais que a Internet seja o terreno por onde não só as comunicações transitam, mas inúmeros negócios possam ser realizados.

 


Item 9
2.3 Estruturação e enquadramento regulatório de novos agentes do ecossistema digital e seus impactos concorrenciais

A seguir é apresentada uma breve reflexão acerca da estruturação de alguns serviços do ecossistema digital, seu enquadramento legal e regulatório atual, e alguns casos recentes em que a Anatel avaliou as relações com os grandes usuários. Como contextualização dessa discussão, é relevante traçar um histórico dos casos recentes em que a Anatel se debruçou na avaliação de algumas aplicações e serviços fornecidos por meio da internet, entre eles o enquadramento regulatório dos serviços de streaming de vídeo por subscrição (sVOD) em razão do caso Claro-Fox, e como essa discussão evidenciou a necessidade premente de avaliar o relacionamento entre prestadoras de serviços de telecomunicações e de Serviços de Valor Adicionado. Além de outros, como o caso das mensagens SMS Corporativas (Caso Zenvia x Telefônica), do RGI – ADPF nº 546, da Segurança e Integridade de Redes, do Plano de Ação de Combate à Pirataria (Mapeamento e Bloqueio de TV Boxes) e das Chamadas Abusivas, dentro de um escopo mais amplo de combate a fraudes e garantia do uso adequado de redes de telecomunicações.


Item 10
2.3.1 Caso Segurança e Integridade de Redes (Gerência da Porta 25 e Plano de Implementação do IPv6)

Um exemplo importante da atuação da Anatel junto aos provedores de aplicação, usuários e prestadoras de telecomunicações que compõem a internet, com o objetivo de garantir a integridade e segurança das redes de telecomunicações e seus usuários foi a Gerência da porta TCP/IP 25.

Sempre que um consumidor se conecta à internet, por meio de um provedor de conexão, ele recebe um endereço IP que o identifica na rede. Da mesma forma, todo servidor que armazena algum conteúdo ou serviço na internet também possui um endereço IP que o identifica, sendo esta figura denominada provedor de aplicação à luz do que dispõe o Marco Civil da Internet - MCI.

Desta forma, quando um usuário quer acessar um conteúdo de um provedor de aplicação na web, ele informa no seu navegador o endereço do servidor do provedor de aplicação (por exemplo, www.anatel.gov.br). Em seguida, o navegador busca em um catálogo na internet (servidor DNS - Domain Name Server) qual é o endereço IP vinculado ao servidor de aplicação naquele momento para, em seguida, solicitar uma conexão.

Como é usual que várias pessoas tentem acessar o mesmo conteúdo de um servidor de aplicação, é necessário que tecnicamente se estabeleça um vínculo entre estes dois endereços IPs (um pertencente ao dispositivo do consumidor e outro ao servidor do provedor de conteúdo) para garantir que os pedidos destes usuários sejam devidamente tratados e respondidos, tendo em vista que a comunicação TCP/IP é assíncrona.

Tal vinculação é feita pela reserva de uma entidade lógica chamada "porta" em cada um dos dois endereços TCP/IP. Por exemplo, o consumidor que deseja acessar o portal da Anatel (www.anatel.gov.br)  acessará no servidor de endereço IPv4 200.0.81.67 a aplicação do portal  ativa na porta 80, tendo em vista que todas as páginas na internet (sem criptografia) ficam ativas nesta porta (conforme padrões internacionais definidos pelo IETF). Outro exemplo seria um usuário que deseja consultar o portal na internet do seu home banking, neste caso ele acessaria o endereço IP do servidor de seu banco e a aplicação que fica aguardando conexões na porta 443, que é a porta padronizada para portais na internet que utilizam criptografia.

Da mesma forma, quando o servidor de aplicação recebe o pedido de conexão do dispositivo do consumidor, ele também registra a porta e o IP que este dispositivo reservou naquele momento para a sessão de comunicação TCP/IP. Como se trata de um acesso temporário, no dispositivo do consumidor é alocada dinamicamente uma porta que não esteja em uso para identificar a sessão de comunicação com o servidor de aplicação.

O protocolo TCP/IP definiu a existência de 65535 portas para este controle de sessões. Contudo, da mesma forma que as portas 80 e 443 são reservadas para identificar o servidor de portais na internet (sem e com criptografia, respectivamente), diversos outros serviços (como os servidores de e-mail na porta 25) também têm portas reservadas e padronizadas onde a aplicação fica aguardando a conexão dos consumidores. Este trabalho de padronização e reserva de portas é feito em âmbito internacional pela Internet Assigned Numbers Authority - IANA, com base na Recomendação Internacional RFC-6335. No endereço na internet da IANA (https://www.iana.org/assignments/service-names-port-numbers/service-names-port-numbers.xhtml) é possível verificar quais portas estão reservadas para cada tipo de serviço.

O protocolo também define que, como padrão, a comunicação se inicia sempre com um pedido do usuário em direção ao servidor de aplicação que estabelece a conexão registrando o endereço IP e a porta dinamicamente alocada pelo dispositivo do usuário nesta situação. Desta forma, para que seja possível a comunicação que se inicia no consumidor em direção a um servidor de aplicação é necessária que o conjunto IP/Porta do servidor seja previamente conhecido e esteja hábil para receber pedidos de conexão.

A figura abaixo busca demonstrar, de uma forma simplificada, este processo de alocação de portas na comunicação TCP/IP.

Figura 12 – Alocação de Portas.

 

Em 24 de abril de 2009 o COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL – CGI.br publicou a Resolução CGI.br/RES/2009/002/P onde foi recomendada a Gerência da porta TCP/IP 25 nas redes conectadas a internet no Brasil, tendo como racional o crescente abuso de computadores de usuários finais, possivelmente infectados ou mal configurados, que utilizavam a referida porta TCP/IP para o envio de spam e a propagação de códigos maliciosos e fraudes por e-mail.

A recomendação define uma série de ações a serem implementadas tanto pelos provedores de aplicação como pelas prestadoras de telecomunicações, tais como o bloqueio da comunicação na internet destinada a porta TCP/IP 25,  e a implementação de mecanismos de autenticação na rede para o envio e recebimento de mensagens, procedimentos estes recomendados por diversos organismos internacionais, incluindo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD - Organisation for Economic Co-operation and Development), o Messaging Anti-Abuse Working Group (MAAWG), o London Action Plan (LAP) e a Federal Trade Comission (FTC).

Com o intuito de implementar a medida nas redes de telecomunicações brasileiras, em 2012 foi firmado o “Acordo de Cooperação para Implementar a Recomendação da Gerência da Porta 25”, entre a Anatel, Provedores de Aplicação e Prestadoras de Telecomunicações para que até janeiro de 2023 as medidas estivessem implementadas por todos os envolvidos.

Como se verifica no portal https://antispam.br/, diversos benefícios foram alcançados pela medida, como:

  • Saída dos blocos das operadoras de listas de bloqueio – com a diferenciação das conexões de perfil residencial, daquelas de perfil comercial, e a redução dos spams enviados.
  • Diminuição de reclamações de usuários – com suas máquinas não sendo mais abusadas, o usuário sente uma sensível diminuição no uso dos recursos computacionais, bem como, com a redução do consumo de banda para envio de spam, ele sente melhores condições de utilização da rede. 
  • Dificulta o abuso da infra-estrutura da Internet para atividades ilícitas (fraudes, furto de dados, etc). 
  • Aumenta a rastreabilidade em casos de abusos. 
  • Atua já na submissão, antes do spam entrar na infra-estrutura de e-mail, implicando em menos desperdício de banda e em menos esforço de configuração de filtros anti-spam. 
  • Diminuição do consumo de banda internacional por spammers – como mostram os resultados do Projeto SpamPots, 99.84% das conexões dos spammers eram originadas do exterior e mais de 90% dos spams eram destinados a redes de outros países. 
  • Diminuição de custos operacionais – o spam foi o mais apontado como responsável pela demanda de recursos operacionais no "2008 Worldwide Infrastructure Security Report" (registro gratuito no site é necessário para o download do relatório mais atual), pesquisa realizada pela Arbor Networks

Destaca-se que a medida, que foi implantada com sucesso em 2013 frente a atuação da Agência, está em linha com os ditames legais do MCI, onde o legislador preocupou-se com a preservação e garantia da neutralidade, mas também, com a preservação da estabilidade, segurança das redes de telecomunicações, conforme definido no Art. 9º do MCI:

Lei n.º 12.965/2014 - Marco Civil da Internet

Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

§ 1º A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de:

I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e

II - priorização de serviços de emergência.

[Grifamos]

Na mesma linha, o Decreto nº 8.771/2016, que regulamenta a Lei nº 12.965/2014, especifica em que termos serão considerados os requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada de serviços e aplicações:

Decreto n.º 8.771, de 11 de maio de 2016:

Art. 5º Os requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada de serviços e aplicações devem ser observados pelo responsável de atividades de transmissão, de comutação ou de roteamento, no âmbito de sua respectiva rede, e têm como objetivo manter sua estabilidade, segurança, integridade e funcionalidade.

§ 1º Os requisitos técnicos indispensáveis apontados no caput são aqueles decorrentes de:

I - tratamento de questões de segurança de redes, tais como restrição ao envio de mensagens em massa (spam ) e controle de ataques de negação de serviço; e

II - tratamento de situações excepcionais de congestionamento de redes, tais como rotas alternativas em casos de interrupções da rota principal e em situações de emergência.

§ 2º A Agência Nacional de Telecomunicações - Anatel atuará na fiscalização e na apuração de infrações quanto aos requisitos técnicos elencados neste artigo, consideradas as diretrizes estabelecidas pelo Comitê Gestor da Internet - CGIbr.

[Grifamos]

Outra ação anterior de suma importância que envolveu os mesmos atores que também traz impactos na segurança das redes de telecomunicações e afeta diretamente as ações de investigação de crimes cibernéticos foi o Grupo de Trabalho para Implantação do protocolo IP versão 6 – GT-IPv6.

Na versão 4 do protocolo o endereço  IPv4 permite o endereçamento de aproximadamente 4,3 bilhões de equipamentos univocamente. Contudo, devido ao crescimento vertiginoso da quantidade de terminais de acessos às redes, a quantidade de endereços IPv4 disponíveis, tanto mundialmente quanto no Brasil, chegou ao fim e, tornou-se imperativo iniciar a migração para a nova versão 6 do protocolo IP (IPv6). Porém, para suportar o contínuo crescimento de acessos e, até que a migração seja finalizada por todos os envolvidos (prestadoras de telecomunicações, provedores de conteúdo e usuários), torna-se necessário implementar soluções de contorno para permitir que novos usuários continuem acessando o conteúdo disponível apenas em IPv4.

O acesso à internet, no que toca aos serviços de telecomunicações de interesse coletivo, pode ser realizado pelo Serviço de Comunicação Multimídia - SCM (banda larga fixa), regido principalmente pelo Regulamento do SCM, aprovado pela Resolução n.º 614/2014, ou pelo Serviço Móvel Pessoal (banda larga móvel), regido principalmente pelo Regulamento do SMP, aprovado pela Resolução n.º 477/2007.

Ressalta-se que os dois Regulamentos citados anteriormente não detalham a solução técnica a ser utilizada pela prestadora de telecomunicações para prover a conexão de dados ao consumidor final, sendo que hoje não há em tais Regulamentos previsão da obrigação de uso do IPv6.

Contudo, frente a importância do tema, por meio da Portaria nº 152, de 19 de fevereiro de 2014, a ANATEL criou um grupo de trabalho (GT-IPv6) com o objetivo de coordenar as atividades necessárias à adoção do protocolo IP-Versão 6 nas redes das prestadoras de serviços de telecomunicações brasileiras e a adoção da solução temporária e paliativa para o período de transição para o IPv6, quando ainda será necessário garantir o acesso IPv4 para o usuário final.

Dessa forma, o grupo, que foi coordenado pela Anatel e contou com a participação do CGI.br e das principais operadoras de telecomunicações do Brasil, discutiu os aspectos técnicos e as implicações da migração para o protocolo IPv6, tais como: cronograma e estratégia a ser adotada pelos prestadores de conexão e acesso à Internet para a referida migração; cronograma e estratégia de adoção do IPv6 na oferta de interconexão/interligação de redes, assim como nos equipamentos terminais que são comercializados no mercado; requisitos IPv6 de certificação para equipamentos terminais. O detalhamento das discussões e resultados do grupo podem ser consultados no Relatório de Atividades do grupo.

Na presente data todas as prestadoras que participaram do grupo já implementaram o protocolo IPv6 em suas redes. Destaca-se, no entanto, que mesmo após a disponibilização pelas prestadoras do IPv6 para o usuário final, também é necessário que o usuário tenha um equipamento compatível com o novo protocolo, sendo que a prestadora não tem a obrigação de efetuar a troca dos equipamentos adquiridos pelo usuário que são incompatíveis com o IPv6.

A Anatel ainda trabalhou junto com os fabricantes e padronizou os requisitos IPv6 mínimos que novos equipamentos utilizados pelo consumidor (terminais móveis, modens ADSL e Cable Modens) devem suportar, sendo estes itens obrigatórios para que o equipamento seja certificado pela Agência e possa ser comercializado no Brasil. Por consequência, espera-se que, com o passar do tempo, grande parte dos dispositivos seja compatível com o protocolo IPv6. 

Frente a isso, conforme estatísticas do CGI.br da imagem abaixo, cerca de 30% dos acessos a internet no Brasil são realizados hoje com o novo protocolo, número este coloca o Brasil entre os países que mais implementaram o novo protocolo no mundo.

Figura 13 - Estatisticas de implantação do IPv6 no Brasil - Fonte: CGI.br.

Devido ao esgotamento do IPv4, e até a migração completa das redes (prestadoras, provedores de conteúdo e usuários) para o IPv6, é necessária a adoção de uma solução de transição que permita o crescimento da base de usuários ainda no antigo protocolo, sendo a solução adotada no GT-IPv6 o compartilhamento de endereços IPv4 públicos por meio da implantação de plataformas Carrier Grade Network Address Translation (CG-NAT ou NAT-44).  Deve-se mencionar, ainda, que esta solução de transição adotada no Brasil não é exclusividade do país, tendo sido adotada em diversos outros países. Contudo, caso seja necessária a quebra de sigilo da comunicação dos usuários onde foi implementada a solução de transição, é mandatório que se informe a porta da conexão de forma a identificar o usuário. Como a Agência entende que os dois protocolos vão conviver durante um período de tempo considerável, é necessária a guarda do endereço IP e porta lógica de origem tanto pela prestadora de telecomunicações quanto pelo provedor de conteúdo.

Quanto a este tema, conforme levantamento realizado pela Agência, todas as prestadoras participantes do GT-IPv6 que passaram a utilizar essa solução temporária como paliativo do uso do IPv4 até a plena migração para o IPv6, assim como implantaram em suas redes os procedimentos necessários para a guarda da porta de conexão TCP/UDP para permitir que os pedidos de quebra de sigilo por meio de ordem judicial continuem a ser cumpridos.

Contudo, para que seja efetivo o atendimento a estes pedidos de quebra de sigilo, é essencial que os provedores de aplicação (conteúdo) também realizem a guarda da porta TCU/UDP, fato que até a presente data ainda não ocorre em grande escala, restando desta forma prejudicadas as ações de investigação que envolvam a internet, situação que demanda novas ações dos atores envolvidos para ser endereçada.

Ambos os exemplos são evidência da atuação da Anatel para garantir segurança e integridade das redes de telecomunicações, incluindo a internet, mesmo que para alcançar esse objetivo seja fundamental a interação com provedores de aplicação e de conexão, além das prestadoras de serviços de telecomunicações.


Item 11
2.3.2 Plano de Ação de Combate à Pirataria (Mapeamento e bloqueio de TV Boxes)

Em 2018 foi instituído o Plano de Ação de Combate à Pirataria (PACP) com o objetivo de fortalecer a atuação da Anatel no combate à comercialização de produtos não homologados. Os resultados obtidos pela Anatel com a execução do PACP são expressivos. Contudo, com o tempo, foi possível observar que ainda havia grande disponibilidade desses produtos no mercado.

Além disso, foi observada forte correlação entre o mercado de produtos irregulares e serviços baseados na Internet, especialmente a comercialização de produtos para telecomunicações não homologados por meio do comércio eletrônico e a comercialização de equipamentos terminais destinados à recepção de conteúdo sem autorização do detentor de direitos autorais. São dois os tipos de produtos para telecomunicações não homologados mais encontrados: os desbloqueadores de sinais de TV por assinatura20 e os TV Boxes21.

No caso dos TV Boxes, como podem ter aplicação legítima, esses são considerados equipamentos terminais de usuário passíveis de homologação. De fato, há inclusive alguns modelos desses equipamentos homologados pela Anatel. No entanto, há aplicativos disponíveis ao usuário que, quando instalados em qualquer dispositivo com o sistema operacional compatível, permitem a recepção de conteúdo ilegal por meio de acesso a sites localizados no Brasil ou no exterior. Sendo que, a maioria do conteúdo disponibilizado por essas plataformas online são ilegais e estão armazenados, especialmente em sites baseados no exterior. Nesses casos, o combate à comercialização de equipamentos não homologados não é suficiente, visto que há possibilidade de instalação de softwares destinados à recepção de conteúdo pirata mesmo em dispositivos homologados pela Anatel. Fez-se necessário, portanto, avaliar outras formas de atuação da Agência de forma a aumentar a efetividade do combate a essas irregularidades.

Em sua avaliação, foram observados pela Anatel os efeitos da pirataria que são bastante relevantes, conforme estudo realizado em 2020 pelo Instituto IPSOS, a pedido da Motion Pictures Association (MPA), onde se identificou que as perdas com pirataria de filmes e séries representam quase R$ 4 bilhões por ano. O estudo estima que, em três meses, 2 bilhões de acessos foram feitos em plataformas de conteúdo pirata. Os números demonstram ainda que o volume de consumo de conteúdo audiovisual pirata vem se aproximando dos níveis consumidos em programação e títulos distribuídos em canais legítimos. A pesquisa também revelou que 28% dos acessos indevidos se deram através de plataformas onde o conteúdo é gerado pelos usuários, artifício muito utilizado para a transmissão pirata de programação ao vivo, como notícias e eventos esportivos.

 

Tabela 3 – Estudo da IPSOS/MPA sobre os efeitos da pirataria.

Estimativas de perdas com vendas e volume de produtos com Pirataria de filmes – 2018

 

Estimativa de perda de
volume (em milhões)

Preço médio (em
R$)

Perda estimada (em R$
milhões)

Cinema (bilheteria)

83

14,96

1.242

Aluguel de DVDs

25

5,59

140

Assinatura de Vídeo sob demanda
(por filme)

44

14,63

644

Compra de DVDs piratas

31

20,99

651

Download pago

32

39,07

1.250

Total

450

-

3.926

Fonte: Pesquisa IPSOS/MPA, 2019.

Outro estudo realizado em 2019 pela MUSO, a pedido da Alianza, indicou também que 58% do tráfego global na internet é de conteúdo audiovisual e, no ranking de acesso a sites de streaming pirata, o Brasil ocupa o 1º lugar na América Latina e o 3º no mundo com 7,2 bilhões de visitas, sendo que 438 milhões de visitas ocorreram em sites ilegais de esportes ao vivo. A perda da base de TV por assinatura foi da ordem de 1,5 milhão de assinantes. Pelos números da MUSO, ao realizar uma análise quantitativa de dados em larga escala da demanda de pirataria digital nos sites de pirataria desde janeiro de 2017, destacou-se uma tendência de aumento geral da demanda por conteúdo de TV e filmes de alta qualidade sem licença por meio desse formato de distribuição, e, em particular, uma demanda muito significativa por sites que utilizam streaming de vídeo como principal método de entrega.

Ainda nesta linha, estudo da Fundação Getúlio Vargas levantou que dos 500 sites mais acessados no Brasil, 42% eram sobre pirataria audiovisual (FGV, 2018). A Fundação ressalta que a pesquisa levou em conta apenas sites, e não programas de pirataria instalados no computador, o que pode significar um prejuízo ainda maior ao País.

Além do prejuízo no tráfego global na internet, na violação sistemática de direitos autorais e na cadeia produtiva do mercado audiovisual, gerando enormes perdas financeiras para o Governo, a pirataria é uma das principais financiadoras do crime organizado no mundo. Segundo estudo da Europol (SOCTA, 2017), 45% das organizações criminosas estão envolvidas em mais de uma atividade criminosa, sendo os crimes contra a propriedade intelectual parte dos alicerces do crime organizado, permitindo e facilitando o cometimento de outros tipos de crime igualmente graves.

Partindo-se desse diagnóstico, a Agência avaliou de forma detida a possibilidade de operacionalizar bloqueios administrativos de sites, aliado ao combate à comercialização de produtos para telecomunicações não homologados, dentro de suas competências regulamentares e legais.

Avaliou-se, portanto, a proposta de bloqueio administrativo de sites sob a ótica do Marco Civil da Internet, implementado pela Lei nº 12.965/2014, especificamente com relação ao princípio da neutralidade de rede. Vejamos o disposto na referida norma, já citado anteriormente no contexto de outros casos de estudo:

Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

§ 1º A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de:

I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e

II - priorização de serviços de emergência.

§ 2º Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no § 1º , o responsável mencionado no caput deve:

I - abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil;

II - agir com proporcionalidade, transparência e isonomia;

III - informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e

IV - oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.

§ 3º Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo.

(Sem grifo no original)

Avaliou-se que o princípio da neutralidade de rede tem por objetivo garantir a isonomia entre serviços concorrentes que utilizem a infraestrutura de rede para distribuição de seus produtos e que aplicar esse princípio para proteger sites destinados à prática de irregularidades, como é o caso da comercialização de produtos para telecomunicações não homologados e disponibilização de conteúdo pirata, fugia ao propósito norteador do dispositivo normativo. Além disso, avaliou-se também se medidas de bloqueio de sites constituiriam censura prévia. Avaliou-se, portanto, que bloquear um site cujo único objetivo é a comercialização de produtos não homologados e/ou a disponibilização de conteúdo pirata em nada se assemelhava à denominada censura prévia.

Em complemento, na análise do princípio da neutralidade de rede, verificou-se que ele seria uma obrigação que recai sobre o provedor de conexão, não sobre o Estado. O sujeito passivo da obrigação legal imposta pelo art. 9º é “o responsável pela transmissão, comutação ou roteamento” e em momento algum o texto legal proíbe que medidas de bloqueio sejam determinadas por autoridades públicas competentes para coibir atos ilícitos (o que equivaleria, ao menos em certos casos, a colocar o uso que se faz da internet no Brasil fora do alcance da jurisdição brasileira). Nesse sentido, vejamos as considerações de Cláudio Lins de Vasconcelos:

94. De fato, equiparar neutralidade a imunidade não parece ser a melhor opção para atender ao interesse público, especialmente em face na penetração que internet tem hoje em praticamente todas as esferas das relações sociais, dos negócios, da gestão pública e agora chega às “coisas”. Nesse contexto, a rede pode ser inimputável, mas não é imune à prática de atos ilícitos e nem deve conferir imunidade de fato aos seus perpetrantes. Além disso, entendemos que o princípio da neutralidade de rede não pode ser um empecilho à cessação de dano grave e evidente advindo de condutas claramente ilícitas que atingem não apenas os titulares de direitos autorais, como os demais agentes que operam legalmente no mercado audiovisual. Principalmente quando a restauração da ordem jurídica se revela impossível ou inviável, seja pela impossibilidade de localizar o responsável pela aplicação ilícita, seja pela recusa pura e simples em atender aos pleitos legítimos ou mesmo ordens diretas de remoção de conteúdo. (In: Bloqueio Administrativo de Websites Como Medida De Cessação Do Dano Autoral em Tutela Objetiva. Setembro, 2019).

Observou-se também que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em novembro de 2013, que "o exercício de qualquer atividade econômica pressupõe o atendimento aos requisitos legais e às limitações impostas pela Administração no regular exercício de seu poder de polícia" e que "o princípio da livre iniciativa não pode ser invocado para afastar regras de regulamentação do mercado" (RE 765764, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, julgado em 08/11/2013, publicado em DJe-225 DIVULG 13/11/2013 PUBLIC 14/11/2013).

Ressaltou-se, no entanto, que o bloqueio administrativo de sites não configura uma sanção administrativa, mas sim uma medida de cessação ou de contenção de danos, no exercício do poder de polícia, quando não existem outras alternativas viáveis para assegurar a prevalência do interesse público, razão por que independe da imputação de culpa ou individualização de responsabilidades.

Entendeu-se que o enfrentamento dessa questão passava pela definição dos limites da autoexecutoriedade do poder de polícia, ou seja, da possibilidade que tem a Administração de limitar o exercício dos direitos de liberdade e propriedade, em nome da preservação do interesse público, sem a intervenção necessária do Poder judiciário, que, no entanto, sempre poderá intervir, a pedido de qualquer parte interessada, dado o princípio da inafastabilidade do Judiciário. Marcelo Mazzei et al. citam lição de Heraldo Vitta para nomear as hipóteses gerais de autoexecutoriedade de atos decorrentes do poder de polícia:

[N]a executoriedade há coação direta, ou material, do Poder Público em face do administrado; este se submete, pois, à constrição física do Estado, igualmente sem ordem judicial [...] Contudo, a executoriedade do ato administrativo tem cabimento apenas em duas ordens de casos, a saber: (a) quando a lei expressamente a prevê ou (b) quando ela for indispensável à eficaz garantia do interesse público; ou seja, se não utilizada, haveria grave comprometimento da ordem pública. Entende-se, nesta hipótese, haver autorização implícita do ordenamento para que a Administração possa garantir a proteção do bem jurídico. (MAZZEI, Marcelo R.; LORENZI, Marcelo T.; e GERAIGE NETO, Zaiden. A defesa de direitos coletivos e difusos através do exercício do poder de polícia municipal: o direito ao transporte coletivo seguro e o direito à ocupação regular do solo urbano. Revista do Direito Público, Londrina, v.8, n.3, p.233-252, set./dez.2013, p. 241.)

Relembrou-se, então, que Celso Antônio Bandeira de Mello, por sua vez, define os requisitos para o exercício do poder de polícia pelas Agências Reguladoras: (i) existência de fundamento em lei; (ii) sujeição especial, o que se dá com o agente econômico sujeito a regulação; (iii) restrição de sua aplicação ao estritamente necessário para o cumprimento de suas finalidades; (iv) não restrição a direitos de terceiros; e (v) respeito aos limites de sua competência materialmente atribuída por lei (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 29. Ed. ver. e atual. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 843-844).

Avaliou-se, portanto, que a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), Lei nº 9.472 de 16 de julho de 1997, é inequívoca ao determinar a competência da Anatel para "expedir ou reconhecer a certificação de produtos, observados os padrões e normas por ela estabelecidos" (art. 19, XIII). Por sua vez, o Regulamento de Avaliação da Conformidade e de Homologação de Produtos para Telecomunicações, aprovado pela Resolução nº 715, de 23 de outubro de 2019, é explícito quanto à ilicitude da comercialização de produtos não homologados:

Art. 83. São condutas passíveis de sancionamento, observada a legislação e a regulamentação específica:

I - comercialização e uso de produtos não homologados ou em condições diversas das estabelecidas nos respectivos Requisitos Técnicos;

Portanto, não havia dúvidas de que a Anatel possui competência legal para combater a comercialização de produtos para telecomunicações não homologados no país, inclusive por meio de sites intermediadores de negócios.

No que se refere à razoabilidade e proporcionalidade da medida, avaliou-se que a medida buscava eliminar os excessos. Trazendo esses pressupostos para nossa análise, considerou-se que qualquer medida administrativa de bloqueio tomada pela Anatel somente poderia atingir provedores de aplicações que possam ser razoavelmente considerados como agentes do mercado de telecomunicações.

Ainda nos aspectos da razoabilidade e proporcionalidade, é importante esclarecer que as medidas de bloqueio administrativo somente seriam autorizadas contra provedores de aplicação que claramente não ofereçam: (a) mecanismos viáveis de comunicação com os titulares; e (b) uma rotina eficaz para a retirada dos conteúdos infratores. A análise seria feita pela Anatel caso a caso e a medida de bloqueio seria cirúrgica, atingindo apenas nomes de domínio específicos, comprovada e costumeiramente utilizados para a prática ilícita.

Destacou-se que o bloqueio administrativo de um site que comercializa produtos não homologados não afetaria o direito de ninguém. Não afeta o direito do provedor de aplicação em exibir o produto porque, pela lei, ele só teria esse direito se os equipamentos ofertados fossem devidamente homologados. O mesmo raciocínio se aplica ao usuário, cujo direito de aquisição dos produtos deriva da homologação. O direito de liberdade de expressão, do ponto de vista de quem emite a mensagem, e o direito de liberdade de informação, do ponto de vista de quem a recebe, não incluem a exibição e o acesso à equipamentos irregulares.

Ressalta-se também uma das conclusões do Prof. Caio Mário da Silva Pereira Neto, em seu parecer jurídico encaminhado para a Anatel para avaliação do mérito do bloqueio administrativo, que afirma o seguinte:

“Aqueles que disponibilizam conteúdo com infração aos direitos autorais de terceiros, a partir de uma conexão à internet, não podem ser considerados provedores de conexão, ainda que o conteúdo disponibilizado seja idêntico ao transmitido por prestadores de SeAC. Nesse caso, trata-se de uma atividade qualificada pela LGT como SVA e, portanto, como um usuário de um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte.  O fato de o responsável pela transmissão de conteúdo na internet não se qualificar como um prestador de telecomunicações não afasta, contudo, a competência da Anatel para exercer sua regulação sobre esse indivíduo, enquanto usuário de telecomunicações. Nessa condição, o responsável pela transmissão possui deveres legalmente atribuídos pela LGT, em especial o de utilizar adequadamente os serviços de telecomunicações.

Considerando esse dever legal e a competência outorgada pela LGT à Anatel para deliberar sobre a interpretação da legislação setorial, cabe à Agência definir em quais casos a utilização dos serviços de telecomunicações pode ser considerada um “uso indevido”. Sem adentrar nos aspectos relacionados aos limites aplicáveis ao exercício dessa competência, não há quaisquer dificuldades interpretativas para se concluir que a utilização de um serviço de telecomunicações com a finalidade de cometer práticas ilícitas deve ser considerada uso indevido do serviço.  Nessa ordem de ideias, a Anatel pode enquadrar a utilização dos serviços de telecomunicações com a finalidade de reproduzir conteúdo com violação a direitos autorais como um uso inadequado dos serviços de telecomunicações, e, portanto, como uma violação do dever legalmente atribuído pela LGT aos usuários do serviço.”

Em resumo, a Anatel detém a competência de avaliar sobre o uso indevido de redes de telecomunicações e exercer regulação sobre plataformas constituídas como SVA, na sua qualidade de usuários de serviços de telecomunicações. Esse foi o entendimento da avaliação realizada que resultou no referido Plano de Ação.

Ao fim de sua avaliação de matéria altamente relevante para a sociedade, entendeu-se que a Anatel tem competência para determinar o bloqueio administrativo de sites dedicados à comercialização de produtos para telecomunicações não homologados a partir de parecer de outros órgãos responsáveis pelo combate à pirataria de produtos e serviços realizada por meio das redes de prestadores de serviços de telecomunicações. Tendo a Agência aprovado em fevereiro de 2023, um Plano de Ação que visa aprimorar suas atividades fiscalizatórias relativas à utilização e comercialização de dispositivos não homologados do tipo TV Box. O Plano prevê a realização de procedimentos de bloqueio ou redirecionamento de tráfego de conteúdo e de chaves de criptografia do Serviço de Acesso Condicionado – SeAC (TV por assinatura), nesses aparelhos.

O objetivo do Plano é, por meio de medida administrativa, atuar de maneira mais célere, compatível com a agilidade dos fornecedores dos produtos clandestinos. Espera-se, assim, impedir ou prejudicar de forma significativa o funcionamento desses equipamentos e desestimular o seu uso. Com isso, almeja-se: (i) reduzir os riscos às redes de telecomunicações causados por dispositivos TV Box não homologados; (ii) aumentar a segurança física e de dados dos usuários; (iii) reduzir a atividade clandestina de provimento de SeAC por entidades ou pessoas físicas não outorgadas; e (iv) melhorar o equilíbrio competitivo do mercado audiovisual pela redução de ofertas irregulares de conteúdo advindo do SeAC.

Conforme explicitado anteriormente, os riscos aos usuários e às redes de telecomunicações foram os grandes motivadores para o desenvolvimento do Plano, por exemplo, por meio de malwares nos referidos equipamentos que podem causar captura de dados e informações dos usuários, como registros financeiros ou arquivos e fotos que estejam armazenados em dispositivos que compartilhem a mesma rede.

                                   

 

[20] O desbloqueador de sinais é vendido com software nativo capaz de viabilizar a recepção de canais de programação linear usualmente distribuídos por prestadoras de Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), como os canais Globosat, Telecine, HBO, entre outros.

[21] O TV Box é um dispositivo construído para transformar televisores comuns em inteligentes, permitindo acesso a serviços de streaming a partir de conexão à internet cabeada ou sem fio. Muitos desses equipamentos utilizam sistema operacional de código aberto, como o Android.


Item 12
2.3.3 Caso Uso Indevido de Redes de Telecomunicações (Chamadas Abusivas)

Importante ainda registrar que a Anatel vem atuando para garantir que os grandes usuários de serviços de telecomunicações cumpram o seu dever de utilizar adequadamente os serviços, equipamentos e redes de telecomunicações (art. 4º, I, da Lei Geral de Telecomunicações).

Um exemplo recente são as medidas decorrentes do combate às chamadas abusivas nas redes do STFC, especialmente a Medida Cautelar consubstanciada no Despacho Decisório nº 250/2022/COGE/SCO (SEI nº 9294884).

O Despacho Decisório em questão, grosso modo, entende que é uso indevido dos recursos de numeração e uso inadequado de serviços de telecomunicações o emprego de solução tecnológica para o disparo massivo de chamadas em volume superior à capacidade humana de discagem, atendimento e comunicação, não completadas ou, quando completadas, com desligamento pelo originador em prazo de até 3 segundos.

Existindo dever expresso de utilização adequada, a Cautelar em questão não fez nada além de trazer concretude ao referido dispositivo legal ao definir prática que deve ser encarada como uso inadequado pelas prestadoras de telecomunicações.

Diversas empresas, em ações judiciais, tentaram defender a incompetência da Agência para adoção da referida medida, na medida em que, indiretamente, interferia nas suas atividades econômicas. As decisões judiciais foram alinhadas ao entendimento da Agência, assentando ainda que a intervenção nos serviços e nas atividades deles decorrentes pode se dar também por interesses ou princípios maiores, como a defesa dos consumidores.

Consigne-se que o exposto acima está em consonância com a argumentação lançada em diversas decisões judiciais que chancelaram as decisões tomadas por esta Agência em uníssono. Por todas, transcreve-se a decisão do Juiz Federal da 9ª Vara Cível Federal de São Paulo no Processo nº 5016065-27.2022.4.03.6100 que indeferiu a tutela de urgência pleiteada pela entidade de telesserviços interessada:

"Dentre as competências elencadas, a ANATEL tem o dever de proteção aos usuários, com a expedição de normas sobre prestação de serviços de telecomunicações no regime privado e reprimir infrações dos direitos dos usuários.

De fato, não é permitida às agências reguladoras contrariar determinações legais, havendo matérias que só podem ser tratadas por meio do processo legislativo, no entanto, devem expedir normas conforme as características técnicas de casa setor, com determinações específicas que vão além da lei geral criando obrigações e deveres aos regulados. Assim, podem ser tratadas por meio de regulamentos.

Ao que consta, o Despacho Decisório nº 160/2022 foi expedido com o intuito de evitar ligações realizadas por “robôs”, as chamadas “robocall”, determinando que as operadoras de telecomunicações se abstenham de realizar acima de 100 mil chamadas diárias com duração de até três segundos, reduzindo o volume de ligações inoportunas, bem como o bloqueio das chamadas de números não atribuídos pela ANATEL.

In casu, vislumbro que não houve extrapolação do poder normativo. Não se trata de impedir a prestação dos serviços de telemarketing, mas somente a utilização da tecnologia para o disparo em massa de chamadas em volume superior à capacidade humana de discagem."

E, de fato, a regulação do comportamento dos usuários não é estranha a esta Agência. Veja-se, por exemplo, que a Anatel pode vedar o uso de aplicações ou aparelhos pelos usuários que causem riscos à segurança ou estabilidade das redes de telecomunicações. Também pode estabelecer direitos dos usuários-consumidores, como o faz no Regulamento Geral de Direitos do Consumidor de Serviços de Telecomunicações, aprovado pela Resolução nº 632, de 7 de março de 2014.

Em conclusão, para fins legais, a Anatel tem competência para estabelecer obrigações aos usuários de telecomunicações.


Item 13
2.3.4 – Caso Claro x Fox/Topsports

O debate sobre o enquadramento regulatório dos produtos de plataformas digitais, neste presente caso, OTTs22, de comercialização direta de conteúdo audiovisual programado por meio de aplicações da Internet e sua caracterização ou não como Serviço de Acesso Condicionado (SeAC) é recente, merecendo, portanto, menção na presente discussão. Em síntese, observou-se a necessidade de avaliar quanto ao seguinte questionamento: o modelo de negócio em que o assinante contrata seu acesso à Internet separadamente dos canais de conteúdo audiovisual difundidos de maneira linear adquiridos de sua distribuidora, caracteriza-se como a contratação de um Serviço de Valor Adicionado (SVA) ou a contratação de um SeAC?

Ou seja, coube à Anatel decidir sobre a natureza jurídica das ofertas de conteúdo audiovisual programado via Internet por meio de subscrição (sVOD) oferecidos por meio de plataformas digitais conhecidas como OTTs. A questão foi suscitada por meio de denúncias na Anatel com pedidos de medida cautelar apresentadas pela Claro contra a Fox (processo nº 53500.056473/2018-24) e a Topsports (processo nº 53500.057279/2018-66), alegando que os seus produtos, respectivamente, “Fox+” e “Esporte Interativo Plus” teriam natureza de serviço de telecomunicações de interesse coletivo prestado em regime privado, sujeitos, portanto, às regras da Lei nº 12.485/2011 (Lei do SeAC). Desse modo, para a Claro, esses serviços estariam sendo prestados clandestinamente, sem a devida outorga de SeAC.

No que concerne o enquadramento regulatório, entendeu-se no Acórdão nº 472/2020 que, tanto pela não caracterização de um serviço de telecomunicações que realize telecomunicação para fins de distribuição de canais de programação, como pela não caracterização da linearidade em sentido estrito do conteúdo, as Ofertas de Conteúdo Audiovisual Programado via Internet por meio de Subscrição (sVOD) não constituem Serviço de Acesso Condicionado, nos termos da atual regulamentação e legislação, e sim Serviço de Valor Adicionado.

Em sua avaliação do caso, a Agência identificou as tendências para o mercado audiovisual, esclareceu aspectos sobre a difusão/comercialização do conteúdo audiovisual, também trouxe números sobre a evolução histórica do segmento de TV por assinatura. A análise trouxe igualmente um panorama sobre o cenário competitivo dos serviços de acesso condicionado à época. A mesma avaliação realizada constatou, a partir da avaliação do panorama das duas modalidades, SeAC e sVOD (OTTs) que realizem distribuição de conteúdo audiovisual de forma geral, tanto do ponto de vista da estrutura do mercado para oferta de conteúdo audiovisual e dos modelos de negócio existentes quanto do enquadramento regulatório atual dos novos modelos de prestação, que houve uma intensa transformação do mercado audiovisual desde a publicação da Lei nº 12.485, de 2011. Verificou-se, ainda, que o marco legal e regulatório da Comunicação Audiovisual de Acesso Condicionado, em especial no que tange o Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), não abarca alguns novos modelos de negócio em prática hoje, por exemplo, com as aplicações e produtos OTTs. Com a evolução da oferta de banda larga fixa e a difusão de redes de maior qualidade e aptas a distribuição de conteúdos audiovisuais pela internet, novos modelos de difusão de conteúdo audiovisual (streaming OTTs) surgiram e se tornaram amplamente utilizados no Brasil nesse contexto, por exemplo, com o Netflix atingindo cerca de dezenas de milhões de assinaturas no país.

Avaliou-se também os modelos de negócios de VoD conhecidos, analisando-se as empresas que são casos de sucesso dentro de cada modelo como: o Acesso gratuito ou Advertising VoD - AVoD (Youtube e Vimeo); Assinatura ou Subscription VoD - SvoD (Netflix, Amazon Prime Video, HBO GO23, Hulu Plus24 e Globo TV25) Catch-up TV (Globosat Play26, HBO Go27); Aluguel/Venda ou Transactional TV – TvoD (iTunes e o Google Play); e, Modelos híbridos: Aluguel ou Venda combinado com Catch-up TV.

Assim, os limites entre cada segmento, TV por Assinatura tradicional (SeAC) e OTTs, aproximaram-se e confundiram-se à medida que a convergência progrediu, permitindo que o SeAC assumisse atributos e funcionalidades antes restritos às OTTs. Em sentido inverso, as OTTs agregaram em seu portfólio experiências que emulam a TV tradicional, visando nichos de audiência nostálgicos ou mesmo avessos aos novos tempos. Esse fenômeno parece ter incentivado a migração entre os dois modelos, sendo os assinantes que assim o fazem denominados de “cord-cutters”. Há ainda o fenômeno do consumo conjunto com redução de pacotes de televisão por assinatura tradicional, os denominados “cord-shavers”.

Além disso, verificou-se evidência de um desbalanceamento em termos da carga regulatória entre os dois segmentos, televisão por assinatura tradicional e OTTs.

Da avaliação do caso do enquadramento das ofertas de sVOD como SeAC ou SVA, com a edição do Acórdão nº 472/2020, a Anatel foi instada a avaliar de forma mais detida o relacionamento entre os serviços de telecomunicações e os Serviços de Valor Adicionado (SVA).

A legislação aplicável, em especial o §2º do art. 61 da LGT (Lei nº 9.472/1997), assegurou que os Serviços de Valor Adicionado podem usar as redes de telecomunicações para a prestação de seus serviços. Portanto, é plenamente válido que o prestador de um Serviço de Valor Adicionado desenvolva um modelo de negócio no qual não apenas venda a facilidade em si, mas seguindo os condicionamentos previstos na regulamentação, garanta a fruição do SVA. No entanto, as constatações nos autos do processo que resultou no Acórdão nº 472/2020, resumidos muito brevemente anteriormente, indicam que há pelo menos uma sobreposição das ofertas do ponto de vista dos usuários, o que poderia explicar a queda de assinaturas de SeAC e o crescimento de subscrições de serviços de streaming, na sua mais ampla gama de modelos, desde os que trazem canais de programação até os puramente sob demanda, passando por ofertas híbridas.

É de se destacar também que o entendimento que confirma a competência da Anatel para tratar a questão, ao expressar não haver dúvida sobre a competência da Anatel para decidir sobre o enquadramento ou não da atividade objeto do processo como serviço de telecomunicações, interpretando a legislação vigente, independe da análise de outras questões eventualmente relacionadas que sejam de competência da Ancine, devendo cada uma das Agências Reguladoras atuar no âmbito de suas respectivas competências.

Além do impacto concorrencial vislumbrado, há também um impacto em termos de volume de dados trafegados nas redes de telecomunicações, em especial de banda larga para acesso à internet, para a oferta de tais Serviços de Valor Adicionado. Os autos do mesmo processo também discutiram o relacionamento entre as redes e serviços de telecomunicações e os SVAs, ao avaliar os contornos dados pela Lei nº 12.965/2014, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil (Marco Civil da Internet). Salientou-se naquele processo que permitir o acesso ao conteúdo audiovisual formatado em canal de programação por meio da Internet é em sua essência uma aplicação de Internet, isto é, conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à Internet, conforme definição do inciso VII, do art. 5º, do MCI.

Além disso, lembrou-se que a Internet é o sistema constituído do conjunto de protocolos lógicos, estruturado em escala mundial para uso público e irrestrito, com a finalidade de possibilitar a comunicação de dados entre terminais por meio de diferentes redes, conforme inciso I, art. 5º, do Marco Civil da Internet. E que o art. 9º do MCI esclarece que o responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. Tal afirmação a despeito de tratar da neutralidade de rede, deixa claro que não é a Internet em si que realiza a entrega dos conteúdos informacionais, ou seja, existe um agente responsável por essa atividade. A leitura dos dispositivos acima mencionados do Marco Civil da Internet demonstra que o acesso às informações disponibilizadas na Internet pressupõe o acesso a uma rede.

Os autos também distinguiram as aplicações de Internet da conexão à Internet. De acordo com o art. 5º, VII, do Marco Civil da Internet, as aplicações de Internet constituem o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à Internet. Já nos termos do art. 5º, V, do Marco Civil, a conexão à Internet é definida como a habilitação de um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela Internet, mediante a atribuição ou autenticação de um endereço IP. Ou seja, a aplicação de Internet não se confunde com a conexão de Internet em sai, pois não há a possibilidade de a primeira permitir que um computador ou smartphone, por exemplo, conecte-se ou acesse a Internet. O acesso à Internet dependerá, por óbvio, da contratação prévia de um serviço de telecomunicações.

Dessa feita, as aplicações de Internet que possuam por característica a funcionalidade de ofertar canais de programação, como qualquer outra aplicação que utilize recursos das redes de telecomunicações, só terão efetivo uso para aqueles que estejam conectados a uma rede de telecomunicações, ou seja, as empresas que disponibilizam conteúdo audiovisual na Internet como nos modelos de negócio analisados atuam somente na camada de aplicações de Internet, e não na de infraestrutura de rede.

Assim, fato é que uma aplicação de Internet não consegue por si só realizar a entrega do conteúdo, necessitando de um serviço de telecomunicações previamente contratado que faça a efetiva transmissão dos protocolos que estão na Internet para o terminal do receptor do conteúdo. Tais empresas atuam, portanto, como provedoras de aplicações de Internet, nos termos trazidos pelo MCI.

                                   

[22] Proposta de caracterização do conceito de OTT como “aquela acessada ou entregue sobre a Internet que poderia se colocar, técnica ou funcionalmente, como substituto de um serviço tradicional de telecomunicações”, de acordo com a Recomendação D.262 da UIT-T.

[23] HBO GO que evoluiu para o HBO MAX.

[24] Não disponível no Brasil.

[25] Hoje, sob o nome Globoplay, há uma mistura entre conteúdo gratuito e pago.

[26] Hoje, Globoplay.

[27] Hoje, HBO Max.


Item 14
2.3.5 Mensagens SMS Corporativas (Caso Zenvia x Telefônica)

A questão dos SMS corporativos se inicia a partir de reclamações feitas pela empresa Zenvia contra as principais empresas de telefonia móvel do país, sendo a Zenvia uma empresa brasileira prestadora de Serviços de Valor Adicionado de integração com prestadoras de Serviço Móvel Pessoal para disparo automatizado de mensagens SMS.

O breve relato desse documento tem como referência o processo nº 53500.036292/2020-04, com reclamação da Zenvia em face da Telefônica. Outras reclamações com conteúdo semelhante foram feitas pela empresa em face de outras prestadoras do SMP, como Oi Móvel, Tim, Claro e Algar.

As reclamações giraram em torno da mudança na política de precificação das mensagens SMS promovida pelas prestadoras do SMP, com a instituição de um regime de franquias mínimas de consumo e aumento dos preços percebidos, que estariam, de acordo com a Zenvia, ocasionando limitação de acesso a um tipo de comunicação que a empresa entendia como essencial, além de desgaste junto aos seus clientes, com um possível incentivo ao mercado de ofertantes que considerava "piratas".

A Anatel, em sua análise, reconhece sua competência para a apreciação do mérito da questão, uma vez que se trata de reclamação de uma prestadora de serviço de valor adicionado (SVA) em face de prestadoras de serviço de telecomunicações, conforme previsão do art. 61, §2º, da LGT. Indica ainda, com base no art. 159, II, do Regimento Interno da Anatel28, a competência específica da Superintendência de Competição para a resolução de conflitos e a adequação da reclamação da Zenvia ao tipo procedimental “Reclamação Administrativa”, com base no art. 102 do Regimento Interno da Anatel.

Quanto ao mérito da questão, inicialmente, esclarece que, em princípio, seria notório entre os agentes de mercado e a sociedade, a sensação de perda de relevância global do serviço de mensagens SMS, enquanto plataforma de troca de mensagens interpessoais, frente ao crescente aumento da popularidade de aplicativos de mensagens pela Internet, como o WhatsApp, o Facebook Messenger, o Telegram, o WeChat, entre outros.

Por outro lado, verificou-se que, se nas relações interpessoais havia essa sensação, o mesmo não acontecia com as mensagens SMS como plataformas de comunicação de mensagens aplicativo-pessoa ou Application to Person (A2P) e pessoa-aplicativo ou Person to Application (P2A), indicando ainda projeções de crescimento relevantes no cenário do SMS corporativo.

Para melhor compreensão, a análise técnica mapeou a cadeia produtiva deste mercado, com a visualização dos seus personagens e seus respectivos papéis:

1. Clientes Diretos - pessoas jurídicas que contratam os serviços da Integradora, objetivando o envio massivo de SMS de cunho corporativo, promocional, publicitário ou informacional para seus clientes/funcionários/colaboradores.

2. Integradora de SMS - pessoa jurídica que contrata os serviços de terminação de SMS nas redes das prestadoras de SMP, agregando funcionalidades e ferramentas de gestão demandadas por seus Clientes Diretos. A Integradora adquire grandes volumes de SMS das prestadoras e os intermedeiam entre as prestadoras e Clientes Diretos. Subsidiariamente, tem-se ainda a figura dos Revendedores, que são concorrentes da Integradora em nível downstream, atuando em nichos específicos do mercado.

3. Prestadora de SMP - é a detentora de tecnologia de rede e sistemas específicos para envio e recebimento de Mensagens Curtas de Texto (SMS). A prestadora pode ofertar o serviço de encaminhamento de SMS diretamente, mas também viabiliza que uma Integradora atue no intermedeio de sua comercialização.

4. Clientes do SMP - pessoas físicas ou jurídicas usuárias do SMP das prestadoras, que possuam estações móveis aptas a enviar/receber SMS, e possuam algum tipo de vínculo ou interesse com Cliente Diretos.

A análise esclareceu também qual era o papel da integradora – importante para análise uma vez que é a natureza da Reclamante – ao demonstrar por meio da comparação das figuras abaixo como era o modelo anterior e como ficou com a entrada da figura da intermediadora, no mercado.

Figura 14 – Cenários com e sem integradoras no SMS corporativo.

 

Logo se vê o papel de intermediação da integradora na relação entre os clientes e as prestadoras do SMP, possibilitando a simplificação no gerenciamento dos contratos e a facilitação e comodidade para os contratantes.

Na análise do mérito, a área técnica da Anatel explicou que a natureza jurídica da Reclamante é a de prestadora de Serviço de Valor Adicionado (SVA) e, desse modo, por força do art. 61, §1º, da LGT, é usuária do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, tendo garantido o rol de direitos previstos aos usuários dos serviços de telecomunicações pelo art. 3º da LGT, com destaque, em função do caso analisado, aos direitos de não ser discriminado quanto às condições de acesso ao serviço e à informação adequada sobre as condições de prestação dos serviços, suas tarifas e preços (respectivamente, incisos III e IV do art. 3ª da LGT). Por fim, propõe a adoção do Índice de Serviços de Telecomunicações (IST) para dirimir conflito quanto ao índice a ser adotado, por ser mais representativo da atualização de valores intrínsecos à indústria de telecomunicações.

Na decisão sobre o caso, a Anatel, por meio do Acórdão nº 369/2021 (SEI nº 7625988), confirmou sua competência para atuar sobre a questão, ressaltando que tem o poder-dever de dirimir conflitos envolvendo prestadoras de serviços de telecomunicações, bem como competência para intervir no relacionamento que envolva o acesso a redes de telecomunicações por prestadores de SVA. Asseverou ainda o Acórdão que a suposta inexistência de um risco efetivo ao mercado não afasta o fato de que a integradora (a empresa Reclamante – prestadora do serviço de disparo automático de SMS) figura como usuária do serviço de telecomunicações e faz jus ao direito à informação adequada, necessária e suficiente sobre as condições de prestação do serviço, suas tarifas e preços. Apontou também a necessidade de acompanhamento mais detido e vigilante do mercado de SMS A2P29, o qual está sendo contemplado na revisão do Plano Geral de Metas de Competição – PGMC, objeto do item 12 da Agenda Regulatória 2023-2024.

                                   

[28] Regimento Interno da Anatel, aprovado pela Resolução nº 612, de 29 de abril de 2013.

[29] Mensagens de texto (SMS) enviadas de aplicativos de negócios para dispositivos móveis de usuários individuais.


Item 15
2.3.6 Caso Regulamento Geral de Interconexão (RGI) - ADPF nº 546

Trata-se da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54630 tendo por objeto os §§ 1º e 2º do art. 64-A da Resolução nº 73/1998 (Regulamento dos Serviços de Telecomunicações), com redação dada pelo art. 8º da Resolução nº 693/2018 da Anatel (Regulamento Geral de Interconexão – RGI).

Art. 64-A É assegurado aos interessados o uso das redes de serviços de telecomunicações para prestação de serviços de valor adicionado, em regime de livre pactuação, e de forma isonômica e não discriminatória, nos termos do art. 61 da Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997, observados os princípios e fundamentos da Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, e do Decreto nº 8.771, de 11 de maio de 2016(Incluído pela Resolução nº 693, de 17 de julho de 2018)

§ 1º Eventuais conflitos no relacionamento previsto no caput serão dirimidos pela Anatel. (Incluído pela Resolução nº 693, de 17 de julho de 2018)

§ 2º A Anatel poderá solicitar a qualquer tempo cópia dos contratos que materializem o relacionamento previsto no caput.(Incluído pela Resolução nº 693, de 17 de julho de 2018)

Em sua decisão, o Ministro Roberto Barroso resume o pedido da seguinte forma: “A requerente sustenta que as normas impugnadas atribuem, ’sem qualquer fundamento legal, competência à Anatel para dirimir conflitos entre prestadoras de serviços de telecomunicação e prestadoras de serviço de valor adicionado’. Alega que a norma permite a regulação da ANATEL também em face do prestador de serviço adicionado, o que desconfiguraria a regra estabelecida no § 2º do art. 61 da Lei nº 9.472/1997. Aduz que as normas impugnadas incorreram em violação aos princípios da separação dos Poderes (CF, art. 2º), da legalidade (CF, arts. 5º, II, e 37), do devido processo legislativo (CF, art. 5º, LIV), da liberdade de iniciativa e da livre concorrência (CF, art. 170, caput e inciso IV).”.

Em cumprimento ao art. 10 da Lei nº 9.868/1999, o Conselho Diretor da Anatel foi intimado, para que, querendo, se pronunciasse sobre o pedido, o que fez manifestando-se pela improcedência da ação direta. Em seguida, a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República manifestaram-se pelo não conhecimento da ação e pela improcedência do pedido e o Conselho Diretor da Anatel foi admitido no feito na qualidade de amicus curiae.

Em sua decisão, o Ministro Roberto Barroso não conheceu da ADPF, uma vez que os dispositivos impugnados são preceitos normativos secundários que apenas regulamentam o disposto no art. 61, §2º, da Lei 9.472/97 e, logo, exigem a realização de exame de legislação infraconstitucional. Assim, a ofensa à Constituição da República, se verificada, seria apenas reflexa, impedindo o conhecimento da ação. Trata-se então de tentativa de submeter juízo de legalidade do poder regulamentar ao controle concentrado de constitucionalidade, prática que já vem sendo rechaçada pelo STF. Entendeu inexistir, portanto, controvérsias de ordem constitucional ou a lesão a preceito fundamental.

Tendo em vista que a ação não foi conhecida, a decisão, naturalmente, não abordou as questões de mérito levantadas, inclusive o não conhecimento não foi objeto de recurso pela requerente. Porém, cabe destacar o posicionamento quanto ao mérito registrado pela Procuradoria Geral da República – PGR em seu Parecer SFCONST/nº 93261/2020, após indicar que, por força da natureza regulamentar do ato impugnado, a ADPF não reúne os pressupostos necessários ao julgamento de mérito.

Disse a PGR que ainda que a ADPF nº 546 tivesse os pressupostos para tal julgamento, a insurgência no mérito não mereceria prosperar, uma vez que a competência da Anatel no caso encontra previsão no próprio art. 61 e §§ 1º e 2º da LGT:

“Ainda que assim não fosse, a insurgência, no mérito, não mereceria prosperar, porquanto a possibilidade jurídica de a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL escrutinar os contratos firmados entre prestadores de serviços de telecomunicações e os prestadores de serviço de valor adicionado, para garantir a esses últimos acesso às redes, encontra previsão expressa na Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472/1997).” (PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA. Parecer SFCONST/Nº 93261/2020)

E acrescentou, citando a lição do Professor Dr. Márcio Iório Aranha, que os Serviços de Valor Adicionado se submetem à regulação da Anatel no tocante “aos controles necessários à garantia da Integridade das vias de telecomunicação e serviços correspondentes”, reproduzindo em seguida o trecho do livro Direito das Telecomunicações: Histórico Normativo e Conceitos Fundamentais, onde o autor fundamenta seu pensamento, conforme também reproduzido abaixo:

“A primeira questão que se apresenta ao estudioso do direito das telecomunicações no tocante à fixação do âmbito de abrangência dos serviços de telecomunicações refere-se à possibilidade de dispositivo restringir a extensão da competência inscrita na Constituição e dirigida à União (art. 21, XI).

Ao remeter à competência da União à exploração dos serviços de telecomunicações, nos termos da lei, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu a pauta diretiva da evolução do ordenamento de telecomunicações. A reserva legal expressa pelo texto constitucional, embora qualificada por indicativos pouco precisos, tais como a exigência de disciplina sobre a organização dos serviços, criação do órgão regulador e outros aspectos institucionais, não permite a manipulação do conceito de serviço de telecomunicação por disposição legal. O limite da pertinência lógica dos serviços disciplinados por lei regulamentadora do art. 21, XI, da Constituição Federal de 1988 ombreia com a adequação da qualificação dos serviços como de telecomunicações ou de valor adicionado.

Por isso, uma das questões mais espinhosas da regulamentação de telecomunicações no Brasil encontra-se na delimitação da fronteira entre os serviços de telecomunicações e os serviços que apenas lhes adicionam valor ou utilizam de suas redes. A Lei Geral de Telecomunicações (LGT, Lei 9.472/97), no seu art. 61, caput, firmou posição a respeito e definiu quais serviços distinguem-se dos serviços de telecomunicações apesar de se aproximarem muito deles. A LGT considerou como Serviço de Valor Adicionado (SVA) toda atividade que acrescenta novas utilidades a um serviço telecomunicações que lhe dará suporte e com o qual não se confunde. Essas utilidades devem estar relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações.

Apartados dos serviços de telecomunicações, os serviços de valor adicionado submetem-se apenas aos controles necessários à garantia de integridade das vias de telecomunicação e serviços correspondentes pois seus provedores classificam-se como usuários (art. 61, §1º, da LGT) com os direitos e deveres inerentes a essa condição. Esses usuários de serviços de telecomunicações são, todavia, especiais. Em geral, têm potencial elevado de utilização de capacidade operacional das redes, gerando maiores cuidados e garantias tanto para a disciplina de seu aceso, quanto para disciplina de seus limites. A própria LGT, no art. 61, §2º, garante o acesso dos provedores de serviços de valor adicionado às redes de serviços de telecomunicações.” (…)31(grifos nossos)

 

                                   

[30] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5569059.

[31] ARANHA, Márcio Iorio. Direito das Telecomunicações: Histórico Normativo e Conceitos Fundamentais. 3. ed. 3ªed., London: Laccademia Publishing, 2015. 335p.


Item 16
2.4 Diagnóstico inicial do relacionamento entre redes, serviços de telecomunicações e seus grandes usuários

Em arremate à breve contextualização da presente Tomada de Subsídios, esta seção apresenta algumas reflexões sobre o relacionamento entre redes e serviços de telecomunicações e usuários dessa infraestrutura, entre eles aqueles que fazem uso massivo das redes, abordando também aspectos legais e estabelecendo um contexto inicial para a discussão em curso na iniciativa regulamentar em tela.


Item 17
2.4.1 Evidências do uso massivo das redes de telecomunicações

A seguir são apresentados alguns dados e informações disponíveis na Agência e em fontes públicas sobre, entre outros aspectos, o tráfego nas redes de dados, a composição desse tráfego em termos dos maiores usuários, o percentual da capacidade total relacionada a esses usuários, e os impactos para as redes de telecomunicações.

No âmbito das atividades relacionadas ao combate às chamadas abusivas, a Anatel realizou a análise de dados agregados referentes ao tráfego de voz nas redes do STFC e do SMP. Uma das providências adotadas pelas áreas técnicas da Agência foi a solicitação, às empresas Oi, Claro, Tim e Vivo, dos CDRs32 completos das ligações das redes de STFC realizadas no dia 20 de setembro de 2022. Tal fato permitiu às áreas técnicas realizarem uma série de análises para avaliar, naquela data específica e para as prestadoras em questão, o comportamento dos usuários seguindo diversos fatores de análise.

Em que pese sejam dados relacionados a um dia específico – e, para todos os efeitos, típico –, eles permitiram que a área técnica verificasse, por exemplo, que dentre mais de 400 milhões de chamadas analisadas de forma consolidada e anonimizada, realizadas nas redes, o comportamento dos usuários que realizaram mais de mil ligações por dia é de um perfil de elevado número de chamadas curtas.

O total gira em torno de 80% do total de chamadas cursadas na rede, exclusivamente em decorrência do perfil diferenciado do tráfego de uma das grandes operadoras, que se apresenta como um outlier capaz de reduzir a média do agregado das quatro operadoras. Excluída essa prestadora, o número de chamadas curtas para os usuários com mais de 1.000 ligações diárias atinge 88,43%.

Apurou-se ainda, por exemplo, que apenas 54 usuários da rede de uma dessas grandes prestadoras são responsáveis por 81% do total de chamadas curtas (0 a 3 segundos, atendidas ou não) originadas na rede daquela prestadora. Trata-se de cenário que se repete de maneira similar em outras prestadoras analisadas. O que reverbera daí é que, para o tráfego de voz, um pequeno número de usuários é responsável por um volume extremamente alto de chamadas.

No que diz respeito ao tráfego de dados, o Internet Exchange.BR (ix.br) aponta uma curva ascendente desde o ano de 2016 para os pontos de troca de tráfego localizados no país:

Figura 15 – Avaliação do tráfego dados no Internet Exchange.BR (ix.br).

Fonte: https://ix.br/agregado/ - acesso em março de 2023

Importante destacar que o tráfego, em 2023, chega a ultrapassar 26,3 Tbps nos pontos de troca, demonstrando de maneira bastante clara que a demanda por serviços de telecomunicações vem se ampliando de maneira bastante relevante. Tal fato é confirmado pela Pesquisa de Satisfação e Qualidade Percebida 2021, realizada pela Anatel, que também colhe dados referentes aos padrões de uso da internet. O uso de aplicações como streaming de vídeo e redes sociais, que, em geral, demandam maiores volumes de tráfego é comum para a grande maioria dos usuários do país.

O consumo de vídeo é atividade relevante para 80% dos usuários de banda larga fixa. Redes sociais como Facebook, Instagram ou Twitter são de uso constante para 85% dos usuários de banda larga fixa e 82% dos usuários do SMP Pós. Esse perfil de consumo concentra em poucos players um relevante percentual do tráfego de dados. Os aplicativos de Netflix, Youtube, Disney+, TikTok e Amazon Prime tem 37,8% do tráfego downstream segundo Relatório “Global Internet Phenomena Report” da Sandvine”33. Videos em geral representam 65,93% do tráfego nas redes.

Quando analisamos os dados desse relatório por grupo econômico, as Big 6 (Meta, Alphabet, Microsoft, Amazon, Apple e Netflix) representam praticamente 50% do tráfego gerado nas redes. Nas redes móveis, contudo, streaming de vídeo e redes sociais representam 82,5% do tráfego total.


Item 18
2.4.2 Avaliação inicial do atual contexto regulamentar

Aborda-se em seguida acerca das competências legais da Anatel e de aspectos que a Agência já trata e que poderia tratar dentro de seu escopo de atuação, de forma a promover maior eficiência, proteger os consumidores, estimular investimentos, coibindo práticas anticompetitivas, entre outros aspectos.

Inicialmente, salienta-se que os casos trazidos à tona são apenas exemplos da atuação da Anatel na persecução do melhor entendimento em assuntos complexos que envolvem as atividades da era digital. De um lado, empresas prestadoras de serviços de telecomunicações são alcançadas por novas formas de competição, trazidas pelo avanço da Internet. De outro, os grandes usuários de serviços de telecomunicações, entre eles prestadores de Serviços de Valor Adicionado, enfrentam desafios decorrentes da interação com as prestadoras de serviços de telecomunicações.

Em comum, o fato de que a Anatel foi acionada para dirimir as diferenças e avaliar quanto a sua competência em atuar na esfera do relacionamento entre as redes e serviços de telecomunicações e seus grandes usuários, sendo considerada, naturalmente, como o órgão competente para tal. Destaque-se que no caso Claro x Fox/Topsports a Anatel foi provocada por empresa prestadora de serviço de telecomunicações. Por outro lado, no caso das mensagens SMS Corporativas, por empresa prestadora de Serviço de Valor Adicionado, evidenciando o reconhecimento da Agência como o destinatário natural para a resolução de conflitos decorrentes da interação entre tais agentes, até mesmo por empresas prestadoras de serviços não regulados tradicionalmente.

Nota-se claramente no acompanhamento desses processos uma atuação ágil e ao mesmo tempo aprofundada por parte da Agência. No caso Claro x Fox/Topsports, cada ponto levantado pelas partes foi devidamente esmiuçado e explicado, de forma a instruir todos os envolvidos e dotar a decisão final de um embasamento encorpado e sólido, contribuindo para a segurança jurídica necessária para a continuidade das relações naquele mercado.

No outro caso analisado, das mensagens SMS corporativas, a ação da Anatel ocorreu com as mesmas características de agilidade e profundidade, esclarecendo o funcionamento do mercado de SMS A2P, o papel da integradora e as responsabilidades das prestadoras do SMP. Reconheceu então o direito da integradora à informação adequada, necessária e suficiente sobre as condições de prestação do serviço, suas tarifas e preços.

Note-se que, nesse caso, como no anterior, a relação entre empresas prestadoras de serviços de telecomunicações e prestadoras de SVA foi submetida à Anatel que, mais uma vez, consolidou sua vocação e reforçou sua competência para dirimir conflitos surgidos a partir das mudanças que atingem os mercados que de alguma forma tocam a prestação dos serviços de telecomunicações.

Interessante ressaltar o reconhecimento da complexidade da delimitação da fronteira entre os serviços de telecomunicações e os serviços que apenas lhes adicionam valor ou utilizam de suas redes. É exatamente essa questão que a Anatel enfrenta nessa iniciativa regulamentar, tornando essa demarcação entre esses dois tipos de serviços cada vez mais clara, como se vê nos resultados obtidos em casos como o do sVoD (Claro x Fox/Topsports) e o do SMS corporativo. O mesmo pode ser avaliado para os demais casos, que, mesmo em contextos distintos, reafirmam a competência da Agência em tratar o relacionamento entre os dois entes.

Muito pertinente também é o destaque de que os provedores de SVA são usuários diferenciados com “potencial elevado de utilização de capacidade operacional das redes”, demandando então uma atenção maior tanto na disciplina de suas garantias como de seus limites e deveres, especialmente quanto ao uso adequado das redes de telecomunicações, seja quanto a segurança e integridade, seja para mitigar fraudes e pirataria, seja pelo uso massivo de seus recursos.


Item 19
2.4.3 Diagnóstico inicial baseado nas evidências reunidas

A contextualização, apesar de breve, é bastante abrangente e permite algumas reflexões preliminares para o debate que se inicia com a presente Tomada de Subsídios. A avaliação das tendências e dos novos atores no ecossistema digital apontam inequivocamente para um relacionamento de sinergia entre o mundo digital e o das telecomunicações, onde o primeiro não se sustenta sem o último. Novas e inovadoras plataformas digitais tem como base imprescindível os serviços e redes de telecomunicações. Dessa forma, a atuação eficiente e sustentável dos atores desse relacionamento é fundamental para que se promova uma saudável economia digital, nos mais diversos setores, aplicações, produtos e serviços.

Nesse cenário de digitalização de serviços e oferta de diversas aplicações, produtos e serviços por meio de serviços e plataformas digitais, fica bastante claro que essas constituem-se em usuários das redes de telecomunicações, sejam eles diretos ou indiretos, sendo importante repisar que o relacionamento entre esses usuários e as prestadoras desses serviços deve ser profícuo e equilibrado, de forma a garantir investimentos no acesso e na conectividade. Isso significa que esta conectividade deve possibilitar a todos desfrutarem de uma experiência online segura, com qualidade satisfatória, enriquecedora, produtiva e acessível a preços justos, em outras palavras uma conectividade significativa.

Além disso, os casos concretos elencados nesse documento, em especial o relativo a ADPF nº 546, reforçam a competência da Anatel para estabelecer um ambiente favorável no relacionamento entre prestadoras de serviços de telecomunicações e usuários desses serviços, incluindo, por óbvio, as plataformas digitais que se constituam como provedores de Serviço de Valor Adicionado. A Agência mostrou-se apta e competente para dirimir conflitos entre esses atores, e assim incentivar a eficiência, a competição, e a sustentabilidade de ambos os serviços, de telecomunicações e de valor adicionado.

Em complemento, a Anatel entende ser importante discutir os impactos do uso massivo de recursos das redes de telecomunicações, frente ao papel estratégico destas para consolidar e ampliar as aplicações, produtos e serviços ofertados no contexto da economia digital pelas plataformas digitais, que se utilizam essencialmente de recursos de acesso e conectividade.

Em outra perspectiva, uma regulação equilibrada e que coíba práticas anticompetitivas, especialmente entre os dois lados do relacionamento entre prestadoras de serviços de telecomunicações e provedores de Serviços de Valor Adicionado, incluídas aqui as plataformas digitais, pode incentivar modelos de negócio mais sustentáveis, promovendo importantes objetivos de política pública no sentido de uma conectividade significativa e inclusiva.

 

                                   

[32] O CDR, ou registro detalhado de chamada é um registro que contém diversas informações sobre o uso de uma linha telefônica, por exemplo: o número que realizou a chamada, o número que recebeu a chamada, data e hora de início da chamada, duração da chamada, falhas de conexão encontradas, endereço de IP na situação de conexão, entre outros.


Item 20
3. QUESTIONÁRIO

Dado toda a contextualização apresentada, busca-se com as questões a seguir ampliar o entendimento do ecossistema digital, seus relacionamentos, agentes, e implicações tanto para as redes e serviços de telecomunicações quanto para aos usuários dessas infraestruturas, sejam eles provedores de SVA ou não. Assim, as questões se estruturam em questões gerais, questões regulatórias, questões relacionadas a aspectos concorrenciais e aquelas relacionadas ao uso massivo das redes de telecomunicações. Ao final disponibiliza-se um espaço livre para apontamentos não relacionados às questões já levantadas.


Item 21

3.1. Questões Gerais

 

1) Além dos relatados no presente documento, quais são os prováveis modelos de negócio e novos agentes no ecossistema digital que potencialmente utilizem as redes e serviços de telecomunicações? Exemplifique indicando estudos ou dados que corroborem sua resposta.


Item 22

2) De que modo o órgão regulador pode atuar como incentivador/estimulador da economia digital?


Item 23

3) A proteção de direitos dos usuários no ambiente digital tem se mostrado um desafio em diversos aspectos. Nesse sentido, quais mecanismos devem ser adotados para garantir o exercício pleno dos direitos dos consumidores brasileiros de serviços de Provedores de SVA? Quais problemas dos consumidores dos serviços de Provedores de SVA deveriam ser priorizados na atuação regulatória da Agência? Como a Anatel pode contribuir para a proteção aos consumidores finais de práticas desleais, enganosas ou fraudulentas, neste ecossistema sem impedir a inovação e o contínuo desenvolvimento tecnológico?


Item 24

4) Com a ubiquidade das redes IP e de outras tecnologias, vislumbra-se uma dificuldade para o consumidor diferenciar o que seriam serviços de telecomunicações e o que seriam SVAs. Quais são os principais problemas decorrentes dessa questão informacional sob a perspectiva do consumidor? Que medidas e mecanismos a Agência deve priorizar para resolver esses problemas?


Item 25

5) A fim de permitir um diagnóstico eficiente dos mercados de telecomunicações, é necessário que a Agência compreenda adequadamente os ecossistemas adjacentes, como o digital e de mídia; nesse sentido, quais poderiam ser o alcance e o escopo de eventuais requisições informacionais, além das já bem definidas no escopo de atuação da Agência? A assimetria regulatória é estratégia usual na regulação de prestadores de diversos portes e realidades; a lógica em questão seria pertinente também na edição de direitos e deveres para os grandes usuários das redes? Quais critérios poderiam ser levados em consideração na definição de diferentes categorias de usuário?


Item 26

6) De que modo a atuação responsiva (Fiscalização Regulatória), implementada pela Agência como novo modelo de acompanhamento e controle por meio da Resolução nº 746/2021, pode auxiliar nessa atuação de modo positivo?


Item 27

7) Existe lacuna de investimentos nas redes de telecomunicações que requer intervenção regulatória? Em caso afirmativo, qual é a evidência?


Item 28

8) Os provedores de SVA deveriam ter algum papel mais claro quanto a requisitos regulamentares aplicados atualmente apenas aos prestadores de telecomunicações?


Item 29

9) De que forma os provedores de SVA contribuem para melhorar, expandir e manter a infraestrutura de rede que suporta seus serviços? Tais aportes e investimentos podem beneficiar prestadoras de telecomunicações, consumidores e a economia digital? Como é possível quantificar esses benefícios?


Item 30

10) Se diferentes modelos de remuneração de rede forem considerados, que medidas correspondentes seriam necessárias ou deveriam ser adotadas para garantir que esses recursos  sejam investidos efetivamente na infraestrutura de telecomunicações e não desviadas para outros aspectos da operação de telecomunicações?


Item 31

11) Quais seriam os prós e contras do estabelecimento de distintos modelos de remuneração de rede, seja de pagamento por acesso à rede (access fees) ou por terminação de tráfego (termination fees), pelas prestadoras de telecomunicações frente aos provedores de SVA?


Item 32

12) Existe alguma evidência de que as redes de telecomunicações estão com dificuldades para lidar com a demanda de dados dos consumidores? Qual é a capacidade média da atual utilização das redes de telecomunicações, as projeções de tráfego futuras e os custos de rede associados?


Item 33

13) Dada a atuação já bem estabelecida da Anatel no âmbito de discussões envolvendo prestadoras de telecomunicações e provedores de SVAs, quais competências adicionais seriam requeridas para atuação mais ampliada da Anatel?


Item 34

14) Como é o relacionamento entre detentores de infraestrutura de rede, como provedores de serviços de telecomunicações, e detentores de elementos de entrega de conteúdo (Content Delivery Networks - CDN)? Haveria necessidade de regulação sobre algum aspecto desse relacionamento?


Item 35

 3.2 Questões relacionadas ao uso das redes de telecomunicações

15) Uso indevido das redes de telecomunicações é vedado na LGT, porém, é verificado em diversas atividades irregulares, como, por exemplo, o uso massivo sem intuito de comunicação, a pirataria de conteúdo audiovisual, entre outros. Nesse contexto, que aspectos do uso das redes de telecomunicações devem ser observados no estabelecimento da regulamentação sobre o uso indevido das redes?


Item 36

16) O uso massivo de recursos de redes de telecomunicações tem provocado discussões sobre as obrigações dos grandes usuários utilizadores das redes. Quais aspectos devem ser abordados para buscar uma utilização racional dos recursos?


Item 37

17) Quais aspectos do uso abusivo de recursos das redes de telecomunicações por usuários de serviços de telecomunicações devem ser tratados?


Item 38

18) Como seu grupo econômico está se adaptando à demanda crescente por vídeo nas redes de dados? Nesse sentido, novos modelos de negócio ou adaptações a suas plataformas de distribuição de conteúdo estão sendo planejadas ou mesmo implementadas? Há planos de implementar estratégias de plataformas tecnológicas – físicas ou lógicas - centradas na distribuição de conteúdo? As estratégias definidas diferem em relação a terminais móveis e fixos? Qual a participação do consumo de conteúdo audiovisual para cada um desses segmentos, fixo e móvel?


Item 39

19) A confiança nas redes e aplicações dentro do ambiente digital é fundamental para tornar esse ecossistema mecanismo transformador da sociedade, sendo a segurança cibernética elemento essencial que perpassa diversas camadas do ecossistema digital, com os agentes nesse ambiente tendo competências e recursos tecnológicos distintos para tratar das diferentes fraudes e vulnerabilidades. Quais aspectos e mecanismos podem ser considerados para cada tipo de agente no ambiente digital de forma a trazer efetividade no combate às fraudes e confiança na utilização de redes, serviços e plataformas?


Item 40

20) Quais aspectos devem ser considerados no contexto da proteção dos dados pessoais dos cidadãos brasileiros tanto pelas prestadoras de serviços de telecomunicações quanto aos provedores de SVA, caracterizados como usuários de serviços de telecomunicações nos termos da LGT, em especial dos grandes usuários, em especial em seu relacionamento, considerando a interação e colaboração da Agência com outros órgãos competentes no tema? 


Item 41

3.3. Questões relacionadas a aspectos concorrenciais

21) Quais as diferenças que você identifica entre mercados digitais e os mercados tradicionais para justificar tratamentos de defesa da concorrência e regulatórios destes diferenciados daqueles?


Item 42

22) No novo ecossistema digital, existe alguma falha de mercado que ensejaria atuação do regulador? Quais são? Em que estrutura industrial se aplicaria as medidas necessárias?


Item 43

23) Qual tipo de abordagem é mais eficaz para preservar o direito à concorrência frente às atividades das grandes plataformas digitais: a abordagem ex-post, típica das leis antitruste, ou a abordagem ex-ante, típica das normas de regulação? Qual é a tendência mundial das novas legislações sobre plataformas digitais?


Item 44

24) A utilização de assimetrias baseadas em algum critério quantitativo, por exemplo, receita operacional igual ou superior a certo valor, ou outras métricas para definir a aplicação ou não de certas medidas regulatórias seriam adequadas para calibrar a regulamentação? Quais assimetrias e critérios de sua aplicação seriam importantes de serem adotadas no presente contexto regulatório?


Item 45

25) Quais remédios regulatórios típicos das telecomunicações, por exemplo, estabelecimento de regras de transparência, não discriminação, portabilidade, entre outros, poderiam ser também considerados na regulação de mercados digitais?


Item 46

3.4 Quaisquer considerações adicionais sobre a temática (campo livre)

26) Há alguma consideração adicional que deva ser considerada na Análise de Impacto Regulatório (AIR) da presente iniciativa regulamentar? Justifique sua resposta por meio de dados e informações que corroborem sua afirmativa.


Item 47

27) Há estudos e iniciativas que a Agência deva avaliar no contexto da presente iniciativa regulamentar? Justifique sua resposta por meio de dados e informações que corroborem sua afirmativa.


Item 48

28) Outras considerações consideradas pertinentes para a presente avaliação da iniciativa regulamentar em tela? Justifique sua resposta por meio de dados e informações que corroborem sua afirmativa.


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